Cultura

Entenda a frase de Deleuze e Guattari citada por Rafa Kalimann no Instagram

"Os afetos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra", trecho do livro 'Mil platôs' escolhido pela ex-BBB fala sobre resistência política; a colaboração entre os dois autores foi uma das profícuas da filosofia francesa
O filósofo francês Gilles Deleuze, citado por Rafa Kalimann no Instagram. Foto: Reprodução
O filósofo francês Gilles Deleuze, citado por Rafa Kalimann no Instagram. Foto: Reprodução

Parecia autoajuda, mas era filosofia. Nesta terça-feira, a ex-BBB Rafa Kalimann surpreendeu seus mais de 22 milhões de seguidores no Instagram ao postar uma foto sua e escolher como legenda uma frase da dupla de filósofos franceses Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992): “Os afetos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra”.

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A frase aparece em “Mil platôs”, segundo volume de “Capitalismo e esquizofrenia”, publicado em 1980, no qual os dois filósofos dão continuidade à sua empreitada de revisar as estruturas do pensamento ocidental e propõem novas perspectivas para as concepções de ser humano, Estado, relações de produção e vida em sociedade.

Deleuze e Guattari são considerados dois dos nomes mais importantes da filosofia pós-estruturalista, formulada, principalmente, por pensadores franceses influenciados pela revolta operário-estudantil de maio de 1968, como Michel Foucault e Jacques Derrida. Os pós-estruturalistas questionaram as oposições binárias que organizavam o pensamento ocidental e interagiram criticamente com o marxismo , até então predominante nas universidades francesas.

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Suas contribuições se estendem para campos diversos do pensamento, da filosofia à psicanálise, da política à literatura. Frequentemente chamados de “pós-modernistas”, tornaram-se hegemônicos no meio universitário a partir da década de 1990 (após a recepção entusiasmada de acadêmicos americanos) e deram fundamentos teóricos para a chamada “esquerda identitária”.

Mas o que quer dizer a frase citada por Rafa Kalimann: “Os afetos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra”? Segundo Rafael Saldanha, doutor em filosofia e colaborador do Instituto Outros Estudos, primeiro, é preciso entender que, para Deleuze e Guatarri, afeto não é sentimento, aquilo que a gente sente. Eles entendem afeto à maneira de Espinosa, filósofo do século XVII por quem Deleuze tinha predileção. Afeto, na filosofia espinosana, é aquilo que é capaz de dispor nosso corpo e nossa mente de determinado modo, aumentando ou diminuindo nossa potência de agir.

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E como os afetos se tornam armas de guerra, atravessando o corpo como flechas? Saldanha lembra que, para os dois autores, os nossos corpos e comportamento são “moralizados”. Uma forma de resistir é usar o corpo para aquilo que ele não foi prescrito, dedicando-se, por exemplo, a experimentações políticas, artísticas ou até sexuais. É por isso que a frase escolhida por Kalimann é extremamente política.

— Nossos corpos são coletivos atravessados por desejos formados também coletivamente. Os afetos nos atravessam como flechas e são armas de guerra porque eles podem nos impulsionar a nos organizar e resistir às prescrições morais do Estado sobre nossos corpos — explica Saldanha, que faz uma ressalva: os próprios autores reconheciam que isso nem sempre dá certo.

O nerd e o militante

A colaboração entre Deleuze e Guattari nasceu do encontro entre um aluno nota 10 em filosofia e um militante político que não perdia os seminários do psicanalista Jacques Lacan. Deleuze tinha tido uma formação clássica na Universidade francesa e dominava autores como Espinosa, Nietzsche e Bergson. Guattari era próximo da extrema-esquerda, militante antimanicomial e foi o responsável por tornar a filosofia deleuziana mais engajada. Deleuze aproveitou sua sólida formação para questionar as polarizações que regiam certas discussões filosóficas, como também fizeram Foucault e Derrida, que reavaliaram, respectivamente, a loucura e a posição da escrita diante da fala.

— Em “Diferença e repetição”, de 1968, Deleuze mostra que não dá para explicar as coisas apenas por suas semelhanças e propõe um conceito de diferença que não seja subordinado à identidade — explica Saldanha. — Naquele momento, emergiam a luta antirracista e as guerras de descolonização. Deleuze criou uma infraestrutura teórica que preserva o novo. Até então, na história da filosofia, a identidade era que chamamos de “ser”. Se todas as coisas são variações do ser, não há espaço para o novo surgir.

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Deleuze e Guattari escreveram quatro livros juntos: as duas partes de “Capitalismo e esquizofrenia” — “O anti-Édipo” (1972) e “Mil platôs” (1980)—, “Kafka: por uma literatura menor” (1975), título influenciado pelo escritor Jorge Luis Borges , e “O que é a filosofia?” (1991), no qual defendem que filosofar é criar conceitos — eles próprios formularam alguns, como “rizoma”, “desterritorialização”, “corpo sem órgãos” e “máquinas desejantes”. Na primeira colaboração da dupla, “O anti-Édipo”, eles criticaram, de uma só vez, o capitalismo e psicanálise institucionalizada e propuseram uma nova forma de se relacionar com o desejo, que era entendido, por Freud e seus discípulos, como aquilo que falta ao sujeito.

— Com base em referências filosóficas como Marx e Espinosa, eles mostraram que o desejo é da ordem da produção. Tem uma ambiguidade aí: é produção também no sentido fabril. No mundo capitalista, nossas relações e desejos são condicionados pela estrutura econômica — afirma Saldanha. — Deleuze e Guattari não foram os primeiros a misturar Freud e Marx, mas fizeram isso sem que o resultado fosse uma mera soma, conseguindo redescrever tanto o capitalismo quanto o desejo.