Cultura

Escritor José Falero relata abordagem policial em Belo Horizonte: 'Nunca vi PM delicado'

Depois de elogiado livro de contos, gaúcho acaba de lançar seu primeiro romance, 'Os supridores' (Todavia), no qual traduz teoria marxista para gírias das quebradas gaúchas
O escritor José Falero Foto: Reprodução / Todavia
O escritor José Falero Foto: Reprodução / Todavia

SÃO PAULO — Na última segunda-feira (21), o escritor gaúcho José Falero relatou, em sua conta no Facebook, uma abordagem policial armada que sofreu em Belo Horizonte, enquanto tomava uma cerveja na volta da padaria, à tarde. Falero, que acaba de lançar seu primeiro romance, "Os supridores" (Todavia), após o elogiado livro de contos "Vila Sapo", de 2019, escreveu que os agentes da polícia sacaram armas e ordenaram que ele pusesse as mãos na cabeça antes de um punhado de perguntas.

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"Eu fui respondendo. Disse que morava ali em cima e parei pra respirar um pouco. Só tinha ido comprar pão. A sacola não me deixava mentir. A foto na identidade era eu mesmo. O nome no cartão de crédito era mesmo da identidade. Tudo certo", escreveu Falero, de 33 anos. "Já em casa, passado o susto, fiquei pensando que tem gente que nasce, cresce, chega à adolescência, atravessa a juventude, envelhece e morre sem passar uma única vez sequer por essa situação, da qual eu e aqueles como eu já estamos cansados."

Na manhã desta quarta (23), conversando com O GLOBO, por telefone, Falero recordou as inúmeras vezes que foi abordado por policiais. A primeira delas aconteceu quando ele ainda era criança e brincava com os amigos na Lomba do Pinheiro, bairro da periferia de Porto Alegre, onde vive.

— A gente estava brincando de pique-esconde, tudo piazada, tudo criança, quando chegou o carro da polícia, farol alto e mandou todo mundo encostar na parede. Minha tia viu e fez um escândalo. Ela nunca deixava passar um absurdo esses e saía para peitar os policiais — conta Falero, que viajou para Minas para passar as festas de final de ano com a namorada. — Policial nunca é delicado. Dizem que o mau policial é exceção. É o caralho, tá ligado? Nunca vi nenhum policial delicado, em todas as vezes que me abordaram.

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Falero perdeu as contas de quantas vezes já foi importunado pela polícia: andando na rua, esperando para entrar numa festa, voltando dos bairros ricos de Porto Alegre onde trabalhava como porteiro e servente de pedreiro.

Depois do ocorrido da última segunda, ele foi para casa e gastou um bom tempo conversando com o filho da namorada, também um jovem negro, sobre "estratégias para sobreviver" a uma abordagem policial, para "diminuir a probabilidade de tomar um tiro": deixar as mãos sempre à vista, não fazer movimentos bruscos e evitar responder as perguntas dos policiais com grosseria. Um amigo dele, também morador da Lombada do Pinheiro e “boca braba”, discutiu com os agentes e acabou torturado.

'Filosofia aplicada'

Em "Os supridores", há uma cena no qual Pedro, o protagonista, diz a seu camarada Marques para tomar cuidado, "porque a gente já tem a cara e o estilo que os porco tudo tá à cata". Os dois amigos trabalham repondo as mercadorias num supermercado de Porto Alegre e, cansados dos perrengues, decidem a vender maconha para juntar um dinheiro e melhorar de vida.

Quando começam a planejar expandir os negócios e alcançar uma clientela mais burguesa é que Pedro alerta Marques a tomar cuidado com a polícia. Essa é uma das poucas referências explícitas ao racismo ao longo do romance. A outra aparece mais perto do final, quando uma personagem é descrita como "preta demais para ser levada em consideração".

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Falero pensa a escrita como "filosofia aplicada" e diz que não tratou mais explicitamente no racismo em "Os supridores" porque, quando trabalhava no livro, já há alguns anos, estava mais preocupado com a luta de classes, que, para ele, é inseparável da luta antirracista.

— Coloco no papel o que me angustia, o que fica borbulhando na minha cabeça. Quando escrevi "Os supridores", ainda pensava muito pouco sobre raça e gênero e estava descobrindo o pensamento marxista e a obra de (Bertolt) Brecht (1898-1956, dramaturgo alemão) . Até incomodava as pessoas porque tudo era motivo para eu falar de marxismo — recorda. — "Os supridores" é um livro sobre violência e exploração e não tinha como o racismo não parecer ali, porque, no Brasil, o racismo é tamanho que a luta de classes é uma luta antirracista, já a maioria das pessoas em subempregos, lutando por dignidade, é negra.

A irmã de Falero, que é atriz, foi quem o apresentou a obra de Brecht — ele não gostava de ler, mas depois de descobriu um autodidata competente. Os textos do dramaturgo alemão, que queria que o teatro ajudasse a emancipar a classe trabalhadora, encantaram-no porque viu neles uma “reflexão formal do que nós da quebrada intuímos e conhecemos por experiência empírica”. Quando quis presentear a irmã com alguns livros de Marx, Falero precisou trocar, num sebo, sua coleção dos livros de "Harry Potter" por alguns títulos do alemão, teórico do comunismo. Antes de dá-los para a irmã, no entanto, lê-os todos e, na hora de escrever "Os supridores", colocou Pedro para traduzir a teoria marxista para gírias das quebradas gaúchas.

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— As classes mais abastadas olharam a periferia e acham que a gente é alienado. Não é assim, velho. A gente tem consciência de classe, conhece a injustiça e a exploração. E também sabe dar forma artística a tudo isso, é só ver a estética da galera do rap, do slam, que é foda na forma e no conteúdo — afirma Falero. — Um primo meu, que morreu há pouco tempo, mas que era um dos caras mais inteligentes que já conheci, quando leu meu livro disse que eu tinha escrito uma história que qualquer um de nós poderia ter contado.

Falero diz que é lento para escrever, mas confidenciou ao GLOBO que já tem mais de dois terços de um romance pronto, mas, antes de finalizá-lo, precisou começar outro, pois foi assaltado por novas ideias "borbulhando" em sua cabeça.

— Quero pensar a masculinidade tóxica nas periferias — diz ele.