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Escritor português investiga assassinato do primo em premiado romance autobiográfico

Segundo lugar no Prêmio Oceanos, 'Hoje estarás comigo no paraíso', de Bruno Vieira Amaral, mistura fato e ficção ao retratar a periferia portuguesa nos anos 1980
O escritor português Bruno Vieira Amaral: "Eu não acredito em vida após a morte, mas que recordar os que partiram talvez seja a única forma possível de salvação" Foto: Divulgação

SÃO PAULO – Nos tempos de faculdade, o escritor português Bruno Vieira Amaral fazia uns bicos como segurança em um supermercado. Um dia, seguiu um rapaz que parecia atrás de algo para roubar. O rapaz estranhou e foi tirar satisfações. Os dois começaram a conversar e quase acabaram amigos. Vieira contou que era do Vale da Amoreira, um bairro popular nos arredores de Lisboa, habitado por angolanos, cabo-verdianos e “retornados”, os portugueses que voltaram das ex-colônias lusas na África depois da Revolução dos Cravos. O rapaz conhecia o Vale da Amoreira, tinha até família lá.

– Por mais que digamos que somos cidadãos do mundo, sempre pertencemos a algum lugar. Há sempre um lugar que é o nosso primeiro lugar, sem o qual a nossa vida fica amputada. Eu sou do Vale da Amoreira – disse Vieira ao GLOBO, por telefone. – O bairro tinha má fama, diziam ser problemático. O Vale da Amoreira inspirava algum temor em quem não era de lá. Dizíamos que parecia até que vínhamos do Vietnã.

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Filho de pai angolano e mãe portuguesa, com raízes no Alentejo, Vieira cresceu no Vale da Amoreia a assistir novelas brasileiras junto da avó, que, agarrada à Bíblia, via no noticiário dos anos 1980 sinais do fim dos tempos. Hoje, ele não vive mais lá, porém leva apenas 15 minutos a pé para chegar às ruas de sua infância e revisita o bairro em seus romances. Em “As primeiras coisas”, publicado em 2013 em Portugal e vendedor do Prêmio Literário José Saramago, Vieira chamou o Vale da Amoreira de Bairro Amélia e ficcionalizou as histórias de alguns de seus moradores.

Em “Hoje estarás comigo no paraíso”, recém-editado no Brasil, Vieira optou por não mudar o nome do bairro. Nesse romance, que tirou o segundo lugar no Prêmio Oceanos no ano passado, ele investiga a morte de seu primo João Jorge Rego, degolado aos 21 anos, em uma madrugada de Carnaval em 1985, acusado de roubar porcos. Vieira tinha 7 anos e quase não se lembra do primo, que nascera em Angola, vivia de trabalhos braçais e costumava repetir “Cuidado, que eu sou de Luanda”. João Jorge aparecera em “As primeiras coisas” como Joãozinho Treme-Treme. O nome é uma homenagem malandra a uma parenta de Vieira que sofria de tremedeiras.

– Por sua morte ter sido tão violenta, a vida de João Jorge foi reduzida àquele momento. Ele deixou de existir como pessoa para se transformar naquela morte – afirma Vieira, que concorre ao Oceanos novamente este ano com a antologia de crônicas “Manobras de guerrilha”. – Tudo o que ele era, pensou e sonhou, as pessoas que ele amou, tudo isso se apagou com a violência daquele desfecho. Eu queria entender a pessoa por trás daquela morte e, ao mesmo tempo, conhecer as circunstâncias daquele assassinato, chegar a uma verdade sobre o que aconteceu.

Vieira começou escrevendo um livro de não ficção. Entrevistou parentes e vizinhos, consultou processos judiciais e a imprensa da época para reconstituir o assassinato do primo, mas rapidamente percebeu que os fatos eram insuficientes e passou a inventar. Criou personagens, como um juiz português, e adicionou aos fatos doses de imaginação e ensaísmo. “Hoje estarás comigo no paraíso” resultou em um romance autobiográfico que narra como foi crescer em um bairro periférico, cheio de parentes e vizinhos com raízes nas ex-colônias africanos, nos anos 1980, quando o próprio Portugal, recém-democratizado, tentava deixar a periferia da Europa.

Capa do romance "Hoje estarás comigo no paraíso", do português Burno Vieira Amaral (Companhia das Letras) Foto: Reprodução

“Hoje estarás comigo no paraíso” empresta seu título da “Bíblia”. É essa a reposta de Jesus ao ladrão que, da cruz ao lado, pediu-lhe que dele se lembrasse quando entrasse em seu reino.

– Eu não acredito em vida após a morte, mas que recordar os que partiram talvez seja a única forma possível de salvação. O livro é também um memorial ao meu primo – diz. – O verdadeiro do João Jorge não é o do livro. Ele foi a semente que deu origem a esse personagem. Eu só sou o intermediário que, com este livro, cuidou dessa semente para garantir que ela se desenvolvesse em uma árvore.

Vieira não é religioso, mas, até os 14 anos frequentava com a avó as reuniões dos Testemunhas de Jeová e era, em suas palavras, “um grande especialista em temas bíblicos”. Em 2015, ele publicou “Aleluia!”, um livro-reportagem sobre fiéis das igrejas evangélicas neopentecostais que proliferam em Portugal desde os anos 1980, quando a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) aportou por lá.

– Sou impelido constantemente a refletir sobre o sentimento religioso. A fé, a crença, sempre está presente no que escrevo, ainda que de maneira indireta. Até quando escrevo crônicas sobre futebol as histórias bíblicas vêm ter comigo. Assim como o bairro, a Bíblia é o território de histórias, às vezes terríveis, onde eu cresci.

SERVIÇO

“Hoje estarás comigo no paraíso”
Autor: Bruno Vieira Amaral. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 360. Preço: R$ 69,90