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Cultura

Escritora Tati Bernardi relata delicada passagem de filha para mãe

Em "Você nunca mais vai ficar sozinha", autora narra dilemas da gravidez com habitual humor mordaz
Tati Bernardi, escritora Foto: Renato Parada / Divulgação
Tati Bernardi, escritora Foto: Renato Parada / Divulgação

“Oi, eu sou a senha preferencial 76.” Assim somos apresentados à narradora de “Você nunca mais vai ficar sozinha” (2020), novo romance de Tati Bernardi. Antes de ter um nome, Karine, ela é apenas um número na fila de exames laboratoriais. Antes de ter um nome, ela é uma mulher grávida.

A agilidade e o sarcasmo notáveis em seus livros anteriores e presentes em quase tudo o que a autora escreve também estão aqui. Mas, ao humor e à ironia habituais, ela sobrepõe momentos de delicadeza, embaralhando o tom.

Narrado em primeira pessoa, o romance acompanha o percurso de Karine durante a gravidez. A transformação que vive é, a um só tempo, literal e simbólica. Se a dimensão corporal vai se espalhando pelas páginas, em toda a sua concretude, também ocorre uma mudança importante de posição subjetiva: de filha, agora se torna mãe. Exceto que ninguém se torna mãe abrindo mão do posto de filha, portanto, mais do que mera transição, o que temos é uma sobreposição.

“Uma mãe não é nada além de uma filha que brinca”, escreve Elena Ferrante no romance “A filha perdida”. Com Ferrante, Tati Bernardi tem em comum o trânsito pelos afetos mais incômodos. As relações entre mães e filhas, na obra de ambas, são sempre conflituosas. Felizmente, na literatura contemporânea, o dilema da maternidade tem recebido um tratamento estético mais realista.

Impasse da maternidade

A escolha da palavra dilema talvez seja forte, mas não excessiva: para as mulheres, cedo ou tarde, a maternidade se apresenta como um impasse. Como escreveu Simone de Beauvoir, esse é um destino ao qual todas as mulheres acabam tendo que se reportar, acatá-lo ou negá-lo. Porém, mais do que um destino de ordem biológica, é um destino social. O título “Você nunca mais vai estar sozinha” sintetiza bem esse impasse. A frase, dita pela mãe de Karine quando sabe que vai ter uma neta, pode soar como uma ameaça ou uma maldição, não apenas como alento.

“Minha filha, quando eu estava na maca para cortarem a minha barriga e eu finalmente te conhecer, uma enfermeira escreveu na lousa o seu nome. Você escrita e não mais o enjoo que me chutava e socava. (...). ‘Quem é que vem por aí?’, uma outra enfermeira perguntou. A minha filha, eu falei, orgulhosa.”

"Você nunca mais vai ficar sozinha", Tati Bernardi Foto: Reprodução
"Você nunca mais vai ficar sozinha", Tati Bernardi Foto: Reprodução

“Foram mais de dois dias de contrações e meu corpo não dilatou nem um único centímetro para que você passasse. Eu não estava pronta pra ser mãe quando transei, quando engravidei nem quando você quis nascer. Passei a vida inteira sendo filha (...). Ainda assim, minha mãe sempre disse que eu sou uma filha de merda”, diz Karine, em tom de anedota. “Mais tarde, no quarto, perguntaram se podiam te levar para que eu descansasse um pouco da cirurgia e da anestesia e da morfina e da gravidez e de ser esposa e de ser filha e de ter nascido e de não ter feito nenhuma dessas coisas do jeito que eu queria (...). Passei a mão pela barriga e eu era novamente um corpo só.”

Mas a conclusão da narradora, numa epifania singela, é a de que isso é e não é verdade: o corpo de uma mulher, uma vez que seja mãe, talvez nunca volte a ser completamente um corpo só. Preservar alguma autonomia costuma ser trabalho árduo para mães e filhas. Tão árduo como o de aceitar que, por vezes, essas mulheres voltam a se aproximar e a se misturar.

Tati Bernardi dedica o romance à sua avó, à sua mãe e à sua filha. São quatro mulheres completas e autônomas, mas para sempre misturadas — assombro que orienta cada linha desse livro ternurento e mordaz, tão fácil e tão difícil de ser lido.

Fabiane Secches é psicanalista e crítica literária, doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP

Serviço

"Você nunca mais vai ficar sozinha” Autor: Tati Bernardi. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 144. Preço: R$ 39,90. Cotação: Muito bom.