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Cultura

Especulação sobre novo 'Pantera Negra' gera debate: Hollywood quer derrotar a morte?

Chance de Chadwick Boseman ‘reviver’ no próximo ‘Pantera Negra’ reabre discussão sobre os limites dos recursos digitais no audiovisual
Cena do filme "Pantera Negra" Foto: Divulgação
Cena do filme "Pantera Negra" Foto: Divulgação

RIO DE JANEIRO - A última fronteira é sempre a próxima. No cinema  — e em todos os seus filhotes audiovisuais  — os limites entre realidade e ilusão, que sempre foram tênues, estão agora entre a vida e a morte. Hollywood ficou em polvorosa, nos últimos dias, com a informação de que o astro de “Pantera Negra” Chadwick Boseman, morto em agosto, aos 43 anos, poderia ressurgir, digitalmente, no próximo filme da franquia. Se o estúdio vai concretizar a ideia, é uma questão de vontade. Se o público vai aplaudir o resultado, só vendo na tela. Seria mais um passo dentro das vastas possibilidades dos efeitos visuais (VFX, na sigla em inglês), área que tem levado o audiovisual ao “infinito e além” nas últimas décadas, e desafia tanto a imaginação dos criadores como a aprovação dos fãs.

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Antes de morrer, em 2014, o ator Robin Williams deixou um documento que proíbe o uso de imagens suas em filmes ou até mesmo em hologramas, e restringe seu direito de exploração publicitária a até 25 anos após sua morte . Por outro lado, o espólio do ícone James Dean, falecido há 65 anos, autorizou sua “participação” no longa “Finding Jack” , ainda em pré-produção, assim como a família de Whitney Houston aprovou, em 2019, a turnê "An Evening with Whitney Houston", estrelado pelo holograma da diva , morta em 2012. A reação dos fãs à notícia sobre James Dean e aos shows da Whitney digital foi, em boa parte, negativa.

— Eu tenho amigos que viram este show e ficaram um pouco decepcionados, não conseguiram “se enganar” o suficiente para embarcar na proposta do espetáculo — conta o futurista dinamarquês Peter Kronstrom, diretor do Copenhagen Institute for Future Studies na América Latina.

Reação parecida com a que ele próprio teve ao ver a Princesa Leia digitalizada de “A ascensão Skywalker”, filme da saga “Star wars”, em 2019. A personagem de Carrie Fisher (1956-2016) teve o corpo digitalizado “unido” a imagens de arquivo do seu rosto — especula-se que esta seria a técnica para Boseman voltar a “Pantera Negra”.

— Acho que nos dois casos, faltou sentir mais “presença humana” no personagem. Ainda estamos longe disso -- mas estamos mais perto do que há dez anos — ressalta.

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O rosto de Carrie Fisher jovem foi aplicado ao de uma outra atriz em 'Rogue one' para trazer de volta a Princesa Leia Foto: Reprodução
O rosto de Carrie Fisher jovem foi aplicado ao de uma outra atriz em 'Rogue one' para trazer de volta a Princesa Leia Foto: Reprodução

Isso acontece porque o rosto humano é a ainda uma meta a alcançar pela computação gráfica.

— Rostos humanos são a primeira coisa que vemos na vida e aprendemos a reconhecê-la desde que nascemos —  explica o artista de VFX Fernando Reule, brasiileiro que vive em Vancouver, no Canadá, e criou efeitos visuais para filmes como “Silêncio”, de Martin Scorsese, e da saga “Star wars”.— Temos um instinto primata de reconhecermos nossa própria espécie e somos muito bons nisso. Por isso, atingir rostos humanos em CGI com perfeição é um desafio tão grande. Não é fácil definir o que sentimos quando vemos um rosto 3D humano e não acreditamos ser real. Apenas não parece "certo".

Humanos são mais difíceis de criar em CGI pois é preciso que um conjunto de fatores seja trabalhado com perfeição, opina Bruno Sartori, jornalista e deepfaker .

— No filme Liga da Justiça (2017), o ator Henry Cavill teve que regravar algumas cenas, porém, ele havia deixado crescer um bigode para gravações de outro filme. O jeito foi regravar com o bigode para que a pós-produção do filme o removesse com o CGI . O resultado ficou péssimo e virou piada — lembra Sartori, que faz sucesso com paródias políticas na internet, todas construídas com a técnica deep fake , que utiliza aprendizado de máquina para recriar rostos digitais idênticos aos reais. — Com deep fake , hoje, esse problema seria facilmente contornado, além de ser possível finalizá-lo em poucos dias.

O trabalho do futurista Kronstrom é ficar de olho nas inovações tecnológicas para tentar antecipar seus usos no cotidiano da pessoas. Eventualmente, ele diz, tecnologias como inteligência artificial irão se unir aos efeitos visuais para recriar com perfeição o que ele chama de “chispe divino que temos dentro de nós” — embora, ressalte, ainda estejamos bem longe disso. Para o cineasta e produtor Fernando Meirelles, será uma oportunidade e tanto:

— Há um lado interessante nisso tudo: como fazer qualquer imagem está se tornando possível e barato, o limite passará a ser a imaginação. Voar e soltar teia de aranha pela mão vai parecer cada vez mais repetitivo. O truque mesmo será sempre a ideia por trás.

Crescimento dos efeitos visuais é exponencial

O T-Rex de 'Jurassic Park': exemplo de computação gráfica bem realizada no cinema Foto: Reprodução
O T-Rex de 'Jurassic Park': exemplo de computação gráfica bem realizada no cinema Foto: Reprodução

Em 1993, o adolescente Fernando Reule foi ao cinema ver o primeiro “Jurassic park” e saiu de lá com uma profissão.

— Quando vi aquele T-Rex correndo pelo parque e caçando gallimimus eu pensei, com meus 15 anos: "Peraí...tem alguém sendo pago para animar dinossauro em 3D? Eu quero fazer isso — conta o especialista em VFX, que trabalha há 19 anos na área.

Fernando escolheu uma atividade que não para de crescer em todo o mundo. No início deste ano, a TV Globo decidiu reunir todos os seus artistas gráficos numa só área, a Globo Design Center, com mais de 300 profissionais, que é hoje, segundo seu diretor, Alexandre Arrabal, a maior produtora focada em criação digital da América Latina.

—  A gente chama de design porque busca a solução adequada para cada demanda. Vai do furacão de Salve-se quem puder até o cenário do Jornal Nacional — conta Arrabal.

Ivete Sangalo faz um dueto com Tim Maia no 'Criança esperança' graças aos efeitos visuais Foto: Divulgação / TV Globo
Ivete Sangalo faz um dueto com Tim Maia no 'Criança esperança' graças aos efeitos visuais Foto: Divulgação / TV Globo

Entre os efeitos visuais sutis da emissora estão, por exemplo, a plataforma de petróleo da série “Ilha de ferro” (2018), totalmente criada por computador, e o merchandising de produtos atuais inseridos digitalmente na reprise da novela “Totalmente demais” (2015). Em setembro, no “Criança esperança”, Ivete Sangalo fez um dueto com Tim Maia , morto em 1998. Trabalho não falta: na pandemia, com as novelas suspensas, a equipe produziu muito para o jornalismo; com a retomada das gravações, o CGI tem ajudado a garantir o distanciamento social em cenas de luta ou romance, por exemplo.

Plataforma de petróleo, mar, céu e pôr-do-sol: tudo nesta imagem da séire 'Ilha de ferro', da TV Globo, foi criado por computador Foto: Divulgação / TV Globo
Plataforma de petróleo, mar, céu e pôr-do-sol: tudo nesta imagem da séire 'Ilha de ferro', da TV Globo, foi criado por computador Foto: Divulgação / TV Globo

A produtora O2, de Fernando Meirelles, também viu crescer muito a demanda por efeitos visuais nos últimos anos.

— A O2 sempre teve uma pós-produção, mas nos últimos 5 anos ela cresceu muito. Hoje devemos ser a maior pós-produção de entretenimento no Brasil, são 130 funcionários entre São Paulo e Rio. No ano passado fizemos ao menos alguma etapa de 40 longas e 19 séries. Hoje praticamente todas as produções têm algum tipo de efeito visual — diz Meirelles, reforçando que nem todo efeito visual e “visível”.

Mesmo acostumada a trabalhar com chroma key, a popular tela verde onde se aplicam os efeitos visuais na pós-produção, a atriz Nanda Costa, a Erica de "Amor de mãe", espanta-se com a velocidade da evolução dos recursos. Recentemente, ela  precisou imaginar os monstros gigantescos com os quais sua personagem interage no longa internacional “Monster hunter”, adaptação de um game para o cinema.

— Fiz incontáveis takes, falando, sorrindo, com a boca aberta ou fechada... esses movimentos eram captados por inúmeras câmeras. Eles podem inserir esse material em cenas até que eu não rodei. Mas eu estava lá, era eu de verdade sendo a fonte dessas imagens e sequências. Mas eu não acredito que todo esse avanço vá acabar com a nossa "raça" de atores — brinca Nanda, ansiosa para ver os resultados do filme, que tem Milla Jovovich no elenco e estreia prevista para dezembro.

Nem sempre, porém, o resultado é bombástico, com monstros ou batalhas espaciais.

— O bom efeito visual é justamente o que ninguém se dá conta. Em “A vida Invisível”, que se passa nos anos 1940, apagamos todos os carros modernos, pichações e postes. Substituímos prédios construídos depois dos anos 50 por um morro com floresta, para que o Rio não parecesse tão ocupado — conta Fernando Meirelles.

Além das possibilidades artísticas quase infinitas, os efeitos visuais são amados pelos estúdios, produtores e criadores por outra razão: os custos.

Esta cena de 'Dois papas', de Fernando Meirelles, foi criada com efeitos visuais porque o Vaticano não liberou as filmagens Foto: Divulgação / Netflix
Esta cena de 'Dois papas', de Fernando Meirelles, foi criada com efeitos visuais porque o Vaticano não liberou as filmagens Foto: Divulgação / Netflix

— É mais barato ir com uma equipe até Roraima para fazer uma imagem de um ator com o Pico da Neblina ao fundo, ou é mais barato filmar o ator num fundo verde e modelar o pico em 3D ou usar alguma imagem feita por alguém? Dependendo da complexidade do plano, do tipo de movimento que se queira, pode ser mais fácil ir até lá — diz Meirelles, diretor de filmes como “CIdade de Deus”, “Ensaio sobre a cegueira” e “Dois papas”.

— Em Dois Papas, todas as cenas que se passam na Praça de São Pedro em Roma são VFX. Neste caso teria sido mais barato filmar lá mesmo, mas o Vaticano não permitiu.

Leia mais: confira a crítica de 'Dois papas'

Quanto mais se integrarem, mais essas tecnologias vão se expandir sobre nossas vidas.

— Pensa como seria legal trazer o Einstein para ensinar as crianças? Ou ver o Santos Dumont contar sobre suas invenções? As possibilidades são inúmeras — sonha Bruno Sartori.

Sonha?