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Cultura

Fascismo à brasileira: como a ideologia integralista moldou a extrema-direita nacional

Novos livros investigam o radicalismo verde-amarelo
Manifestação de integralistas em 1930 Foto: Arquivo / O GLOBO
Manifestação de integralistas em 1930 Foto: Arquivo / O GLOBO

SÃO PAULO – Nos anos 1930, não era raro avistar, marchando pelas ruas das grandes cidades brasileiras, homens num curioso uniforme composto por camisa verde, calça e gravata pretas e uma braçadeira enfeitada com a letra grega Sigma.  Eram fascistas, membros da Ação Integralista Brasileira (AIB), a maior organização de extrema-direita que o Brasil já conheceu, organizada sob o lema “Deus, pátria, família”, que chegou a reunir centenas de milhares de militantes entre 1932 e 1937, quando foi proibida por Getúlio Vargas.

Fundado pelo político paulista Plínio Salgado (1895-1975), o integralismo foi um movimento nacionalista inspirado na ideologia fascista do italiano Benito Mussolini (1883-1945). Os integralistas saudavam seu líder à moda nazifascista, braços estendidos e mão espalmada para baixo, e cumprimentavam uns aos outros com uma palavra tupi, “Anauê”, que quer dizer “você é meu irmão”. Antes mesmo de criar a AIB, Salgado chegou a ser recebido por Mussolini em Roma. Esse encontro, em junho de 1930, é reconstituído em “ Fascismo à brasileir a”, novo livro do jornalista Pedro Doria, que passa em revista a história pouco conhecida do integralismo e aponta como o extremismo dos camisas-verdes continuou influenciando a extrema-direita nacional e ecoa no bolsonarismo.

Plínio Salgado em discurso nos anos 1930 Foto: Arquivo / O GLOBO
Plínio Salgado em discurso nos anos 1930 Foto: Arquivo / O GLOBO

— Nós, brasileiros, temos uma opinião muito generosa a nosso respeito e, também por isso, a história do integralismo foi apagada. Mas um número muito grande de brasileiros foi fascista — diz Doria. — Pessoas que hoje consideramos acima de qualquer suspeita foram integralistas, como ( o poeta ) Vinicius de Moraes, ( o ministro de João Goulart ) San Tiago Dantas e ( o bispo católico que combateu a ditadura) Dom Hélder Câmara. João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, foi fascista a vida toda e morreu fiel a Plínio Salgado.

Anticomunistas, antiliberais e profundamente religiosos, os integralistas defendiam um Estado centralizador e autoritário e a organização da sociedade em corporações, à moda fascista. Eles espinafravam a democracia e o cosmopolitismo que, àquela época, caíra nas graças dos homens cada vez mais “femininos” de capitais como o Rio e São Paulo. Para os integralistas, homens de verdade eram os bandeirantes paulistas e o caboclo do interior.

Meninas se preparam para uma manifestação em defesa de Deus, da pátria e da liberdade: nas bandeiras, a letra grega Sigma Foto: Arquivo / O GLOBO
Meninas se preparam para uma manifestação em defesa de Deus, da pátria e da liberdade: nas bandeiras, a letra grega Sigma Foto: Arquivo / O GLOBO

Apesar de idealizar o caipira, o integralismo cresceu ancorado nas inseguranças das classes médias urbanas e caiu no gosto dos intelectuais, o que o diferencia de outras expressões da extrema-direita brasileira. Salgado chegou a ler poemas da própria lavra na Semana de Arte Moderna de 1922, e um de seus romances ganhou elogios de Monteiro Lobato. Intelectuais de prestígio como o escritor Gustavo Barroso, que presidiu a Academia Brasileira de Letras, e o jurista Miguel Reale estiveram entre os principais ideólogos do integralismo.

— Salgado não só participou da Semana de Arte Moderna como criou, em 1926, o Movimento Verde-Amarelo, que defendia o fortalecimento da cultura brasileira. Ele era um modernista, tinha apreço pelo cientificismo e dialogava com a intelectualidade católica — explica o historiador Leandro Gonçalves, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autor, com Odilon Caldeira Neto, de “O fascismo em camisas-verdes: do integralismo ao neointegralismo (1932-2020)”, lançado há dois meses pela FGV Editora. — Nesse aspecto, o integralismo se distancia da extrema-direita atual, que é anti-intelectual e avessa à ciência.

Detalhe de capa do livro "O fascismo em camisas verdes" Foto: Divulgação / O GLOBO
Detalhe de capa do livro "O fascismo em camisas verdes" Foto: Divulgação / O GLOBO

Os integralistas chegaram a negociar com Vargas o Ministério da Educação em troca de apoio ao Estado Novo, mas o ditador voltou atrás e a AIB, assim como todos os outros partidos políticos, acabou proibida. No entanto, o fim da AIB não significou o fim da ideologia integralista. Segundo Caldeira Neto, também historiador e professor da UFJF, o integralismo criou um mito que, ainda hoje, sustenta a nossa extrema-direita: o de que o processo de degeneração pelo qual passa a sociedade só será interrompido por meio da restauração dos valores tradicionais e de uma nacionalidade autêntica. A lenda de que os comunistas são os agentes dessa degeneração também é herança integralista.

Contra o ódio: https://oglobo.globo.com/mundo/bolsonaro-um-exibicionista-do-odio-diz-especialista-em-extrema-direita-24493931

— Ao adaptar o fascismo europeu para a realidade brasileira, os integralistas criaram os mitos da nossa extrema-direita — diz Caldeira Neto. — No Brasil republicano, ideais integralistas como o autoritarismo, a defesa da hierarquia, o conservadorismo e o moralismo religioso foram rearticuladas por diversos grupos, alguns que se identificam como integralistas e outros não. “Deus, pátria, família”, por exemplo, não é mais só um lema integralista.

Em 13 de novembro de 2019, o Aliança pelo Brasil , partido que o presidente Jair Bolsonaro tenta criar, tuitou o lema da trupe de Plínio Salgado: “Nossa força é o Brasil! Aliança pelo Brasil. Deus, pátria, família”. O revival integralista no país não parou por aí. Na véspera do último Natal, quando a sede da produtora Porta dos Fundos, no Rio, foi atacada com coquetéis molotov, após o especial de fim de ano da trupe humorística retratar Jesus como gay, a autoria do ataque foi reivindicada por militantes que se dizem integralistas. Em vídeo, eles apareciam encapuzados e vestindo camisas verdes decoradas com a letra grega Sigma.

— Nossa historiografia diz que o Brasil passou incólume pelas formas históricas do totalitarismo (fascismo, nazismo e stalinismo). Se é assim, por que vemos evocações a discursos e símbolos do integralismo tanto no governo quanto em grupos da sociedade? — questiona a historiadora Heloisa Starling, que prepara um livro, a ser publicado pela Bazar do Tempo, sobre os grupos de extrema-direita no país. — Ao contar o que a nossa História esqueceu, conseguimos entender por que a extrema-direita está evocando esses símbolos.

Na Alemanha: https://oglobo.globo.com/mundo/bolsas-para-cadaveres-listas-de-inimigos-por-dentro-dos-planos-da-extrema-direita-alema-para-dia-x-24563412

Segundo Heloisa, a presença histórica de ideologias fascistas por aqui somada às marcas deixadas pela escravidão e à conhecida simpatia das forças políticas por soluções autoritárias fazem do país um solo fértil para o crescimento do extremismo. No entanto, ela lembra que o Brasil não é só isso:

— Nosso caldo autoritário é real e forte, mas não podemos resolver a sociedade brasileira na chave do autoritarismo. O Brasil é autoritário, mas também tem uma história de luta pela liberdade e pela democracia.