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Cultura

Fernanda Diamant abre livraria e editora: 'Flip precisa se horizontalizar e se periferizar'

Ex-curadora retoma planos interrompidos pela pandemia e critica cancelamento da homenagem a Elizabeth Bishop: 'uma pena'
Fernanda Diamant, ex-curadora da Flip, na Megafauna, livraria que ela acaba de abrir em São Paulo Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
Fernanda Diamant, ex-curadora da Flip, na Megafauna, livraria que ela acaba de abrir em São Paulo Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

SÃO PAULO — Quando se demitiu da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em agosto, por meio de uma nota enviada em primeira mão ao GLOBO , a então curadora Fernanda Diamant disse que planejava que "pelo menos metade dos convidados de 2020 seria de  autoras e autores negros". Afirmou também que "mais do que uma programação com autores negros, a Flip agora precisa de uma curadora negra para reinventá-la neste mundo pós-pandemia" e que a festa havia sido "postergada para novembro" à sua revelia . Em agosto, já dava para apostar que, por conta da Covid-19, não haveria aglomeração em Paraty ainda este ano, mas a Flip só anunciou a edição virtual (que começa nesta quinta-feira, 3) dois meses depois.

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A programação , divulgada mês passado, bateu a meta estipulada por Fernanda: dos 22 autores convidados, 11 são negros, uma é indígena e três transexuais ou não binários . Em outubro, a Flip também afirmou que não nomearia um novo curador e que daria seguimento ao "trabalho iniciado" por Fernanda. De fato: dos 22 convidados, 14 foram escolhidos pela ex-curadora.

— A Flip manteve os convites que havia feito. A curadoria não é minha, porque não fui eu quem montou as mesas ou escolheu os mediadores, mas não é exatamente uma Flip sem curador, porque a programação é fruto da colaboração de várias pessoas, eu entre elas — diz Fernanda ao GLOBO na Megafauna, livraria que ela abriu, no último dia 23, no térreo do Copan, edifício projetado por Oscar Niemeyer, no centro de São Paulo.

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Ainda em agosto, a Flip informou que, "com a saída da curadora", encerrava-se também "a homenagem a Elizabeth Bishop". O anúncio, ainda em novembro de 2019, da celebração da poeta americana, que passou mais de 20 anos no Brasil, causou mal-estar : as redes sociais foram tomadas por trechos da correspondência de Bishop nos quais ela afirmava que "um bom poema de Dylan Thomas vale mais do que toda a poesia sul-americana" e chamava o golpe civil-militar de 1964 de "revolução rápida e bonita". As redes sociais exigiram a deposição da homenageada . A Flip demorou a defendê-la , cogitou repensar a homenagem e, em março, cravou: Bishop fica. E dispensou a poeta dois dias depois da saída da curadora.

Elizabeth Bishop, poeta americana cancelada pela Flip, em sua casa em Petrópolis Foto: Agência O Globo
Elizabeth Bishop, poeta americana cancelada pela Flip, em sua casa em Petrópolis Foto: Agência O Globo

— O cancelamento da Bishop foi uma pena . Cancelar e não pôr ninguém no lugar? Foi um desrespeito, porque os convites aos autores foram feitos pensando no diálogo deles com a Bishop — diz Fernanda. — O debate sobre a Bishop foi ótimo, mas faltou apoio institucional da Flip, porque a decisão de homenageá-la não foi só minha, foi da curadoria junto com a direção artística. Torço para que a Flip ouça cada vez mais a demanda por mais representatividade , que não é uma demanda minha, mas anterior a mim. Eu não falo sozinha, mas junto com um coro.

'Baldão de água fria'

Quem entra na Megafauna dá de cara com duas estantes imensas recheadas apenas com livros de autoras negras, de Angela Davis a Conceição Evaristo , de Michelle Obama a Maria Firmina dos Reis . Os autores negros estão na estante ao lado, de Lima Barreto a Frantz Fanon , cujo "Pele negra, máscaras brancas", lançado há pouco pela Ubu, já é best-seller: 32 exemplares vendidos em uma semana.

A abertura da Megafauna estava prevista para acontecer entre março e abril, mas aí veio a pandemia. Fernanda e seus quatro sócios estavam prestes a contratar os funcionários. Apesar do "baldão de água fria", eles aproveitaram a quarentena "para fazer o que nunca da tempo de fazer: planejar com calma". Para evitar aglomerações, eles pediram aos amigos para não visitarem a livraria e, nas vitrines, colaram cartazes pedindo aos clientes para evitar as compras em "horários de pico" e, se puderem, fazerem as encomendas pelo WhatsApp . Apesar de tudo isso, os leitores têm aparecido.

— Domingo, eu estava arrumando a vitrine e um cara bateu na janela querendo comprar um "Sapiens" (do historiador israelense Yuval Noah Harari ) . A livraria estava fechada, mas ele insistiu, disse que tinha o dinheiro trocado e vendi o livro pela janela — conta Fernanda. — Senti que há uma demanda reprimida. Tem muito público leitor, gente da cultura, no centro de São Paulo, mas ainda há poucas livrarias.

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A pandemia também atrasou um outro projeto de Fernanda: a editora Fósforo, que ela bota na rua no primeiro semestre de 2021 junto com dois sócios: a editora Rita Mattar (ex-Companhia das Letras) e o advogado Luís Francisco Carvalho Filho, ex-diretor da Biblioteca Municipal Mário de Andrade. A Fósforo nasce como uma herdeira (meio direta, meio torta) da Três Estrelas, finado selo de não ficção da Publifolha. Além de relançar alguns livros publicados pela Três Estrelas, a nova editora também vai investir em inéditos e em ficção (nacional e estrangeira). A previsão é editar 24 títulos no ano que vem. Fernanda não revela quais nomes já estão no catálogo, mas garante que nele constam " vários autores são negros, brasileiros e estrangeiros " e afirma que ela e os sócios estão preocupados em montar uma equipe diversa e representativa .

Quanto à reinvenção da Flip, que ela própria pautou quando se demitiu, Fernanda arrisca que talvez um "conselho diverso e representativo" trabalhando lado a lado com a curadoria ajudasse a festa literária a acertar o passo com os novos tempos.

— A Flip precisa se horizontalizar e se periferizar. Por que a Flip não abraça a Flup (Festa Literária das Periferias) e fazem uma coisa só? Seria foda — diz. — Valeria muito a pena a programação da Flip ficar disponível on-line de forma mais generosa. Tem muita coisa legal de edições passadas que poderia ter sido disponibilizado durante a pandemia, como fizeram instituições culturais do mundo todo, que abriam seus acervos para as pessoas em casa.

Perguntada se gostaria de fazer alguma consideração final, Fernanda lembrou de suas filhas, Miranda e Emilia:

— Elas são minhas inspiração e eu penso muito no tipo de ambiente que elas vão freqüentar quando crescerem. No Brasil, a chamada “alta cultura”, a “cultura do livro”, é extremamente elitista e racista. Há dois, três anos, a gente nem enxergava isso. A gente se achava inclusivo, mas não era nada disso.