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Cultura

Festival de Berlim começa com recorde de brasileiros selecionados

Até 1º de março, 19 filmes nacionais serão exibidos na capital alemã, incluindo ‘Todos os mortos’, que disputa o prêmio principal, e novo filme de Karim Aïnouz
Cena do filme "Todos os mortos" Foto: Divulgação
Cena do filme "Todos os mortos" Foto: Divulgação

Ao anunciar a programação do 70º Festival de Berlim, no fim de janeiro, o jornalista italiano Carlo Chatrian, novo curador da mostra alemã, resumiu o espírito que norteou a seleção de filmes deste ano: “Os comitês foram instruídos a não apenas escolher um filme, mas também a apoiá-lo, e dar-lhe uma vida”, a entendê-lo como “parte de um quadro maior”. O recado era extensivo ao Brasil. Emperrado por entraves burocráticos e atacado pelo governo , o cinema nacional conseguiu emplacar um recorde na Berlinale. A maratona, que começa hoje com a exibição de “My Salinger year”, dirigido pelo canadense Philippe Falardeau, e se estende até 1º de março, terá 19 filmes com DNA do Brasil.

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O primeiro é o drama de época “Todos os mortos”, de Caetano Gotardo e Marco Dutra, que disputa o prêmio máximo da Berlinale. Ele concorre ao Urso de Ouro com 17 filmes, entre eles o francês “Le sel des armes”, de Philippe Garrel, e o americano “Siberia”, de Abel Ferrara. Os outros brasileiros são produções e coproduções espalhadas por seções do festival, como “Nardjes A.”, de Karim Aïnouz (“A vida invisível”).

“A diversidade dos filmes selecionados é a melhor resposta para quem diz que o cinema brasileiro não está vivo, e não deve ser financiado”, disse Chatrian à rede de TV Deutsche Welle, demonstrando preocupação com as turbulências do audiovisual brasileiro. O curador também convidou o pernambucano Kleber Mendonça Filho (“Bacurau”) para integrar o júri internacional, presidido pelo ator britânico Jeremy Irons.

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Chatrian fala de uma diversidade estética, narrativa e também temática. O painel de filmes brasileiros em Berlim abrange desde questões ambientais até o drama das correntes migratórias. O documentário “O reflexo do lago”, de Fernando Segtowick, por exemplo, trata do impacto que a construção da hidrelétrica de Tucuruí, em 1984, no Pará, teve sobre as comunidades vizinhas. E “Cidade Pássaro”, de Matias Mariani, acompanha um músico nigeriano à procura do irmão em São Paulo.

Os filmes de Segtowick e Mariani estarão na mostra Panorama, a paralela mais importante do festival, ao lado do documentário “Nardjes A.”, de Karim Aïnouz. A história acompanha os protestos que ganharam as ruas da Argélia no início do ano passado, resultando na renúncia do presidente Abdelaziz Bouteflika, que estava há mais de duas décadas no poder. Filho de argelino, o diretor cearense estava no país para pesquisar suas raízes quando irromperam as manifestações. E a aventura virou outra, toda “filmada” com celular.

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— O que há de mais relevante na representação brasileira em Berlim neste ano é sua amplitude, em termos de estilo de linguagem, metragem e geografia, com filmes feitos fora dos grandes centros — analisa Eduardo Valente, ex-assessor internacional da Ancine e que hoje exerce a função de delegado consultor do Festival de Berlim. — Eles falam de uma produção que atingiu uma maturidade e variedade enormes, embora possa estar vivendo seus dias finais como fruto de uma política tão democrática de fomento.

Festival politizado

Berlim é o mais politizado dos três maiores festivais de cinema do mundo, ao lado de Cannes e Veneza. A expressiva participação brasileira na maratona alemã adquire um tom simbólico neste ano, em que o programa foi dominado por histórias de “tons sombrios, porque os filmes selecionados tendem a olhar para o presente sem qualquer ilusão”, nas palavras de Chatrian.

— Passamos o ano de 2019 inteiro vendo ataques à arte brasileira, o desmonte ou paralisação dos mecanismos de fomento à cultura, e censura a temas e conteúdos — diz Caetano Gotardo, codiretor de “Todos os mortos”. — Chegar a um dos três maiores festivais do mundo com uma participação tão expressiva nos dá a dimensão da força da nossa cinematografia. Há uma sensação de conjunto, construído ao longo de muitos anos. E isso não se destrói com facilidade.

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Coprodução entre Brasil e França, “Todos os mortos” é um drama de época de viés político, que traça um paralelo entre o passado e o presente da sociedade brasileira. A trama se passa 11 anos após o fim da escravidão e acompanha duas famílias — uma branca e outra negra — que tentam se ajustar à nova realidade.

“Nardjes A.”, por sua vez, apesar de focar num país estrangeiro, também tem seus pontos de contato com o Brasil. O filme de Aïnouz flagra o descontentamento popular dos argelinos em relação ao regime, a partir da perspectiva da militante do título.

— Os dois países viveram uma situação de trauma, que levou a um estado de paralisação social — entende o diretor de “Praia do Futuro”, que concorreu ao Urso de Ouro na edição de 2014. — Fui à Argélia fazer um filme sobre meu pai e acabei no meio de um movimento de resistência inspirador.

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Coautor (com Maíra Bühler) do documentário “A vida privada dos hipopótamos” (2014), Matias Mariani faz sua estreia em Berlim com um híbrido de documentário e drama social. Seu filme reúne atores não profissionais recrutados entre imigrantes africanos de São Paulo, particularmente nigerianos. “Cidade Pássaro”, ele diz, faz parte de uma safra brasileira recente que tem “uma vontade de se comunicar com as plateias estrangeiras”.

— Temos feito filmes mais globais do que em outras épocas. Estamos deixando de ser autorreferentes, buscando histórias mais internacionais — defende Mariani.

Séries em destaque

Além do cinema, Berlim também estará de olho na produção de séries brasileiras. “Desalma” e “Onde está meu coração”, ambas originais Globoplay, fazem parte da programação da Berlin Series Market & Conference.

Escrita por George Moura e Sérgio Goldenberg, “Onde está meu coração” conta a história de uma jovem e brilhante médica, interpretada por Letícia Colin, que se refugia nas drogas para combater suas frustrações, despertando um drama familiar que envolve toda sua família de classe alta.

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Já “Desalma” expõe uma trama sobrenatural que se passa na pequena e misteriosa cidade de Brígida, comunidade de colonização ucraniana no interior do Brasil, onde um acontecimento de 30 anos atrás volta a assombrar a população. Escrita por Ana Paula Maia, tem no elenco nomes como Cássia Kis, Claudia Abreu e Maria Ribeiro.