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'1917' era uma missão impossível: entenda como Sam Mendes criou o favorito ao Oscar

Diretor se baseou nas memórias de seu avô, que lutou na Primeira Guerra Mundial
Filmagem de '1917', épico do diretor Sam Mendes Foto: François Duhamel / Divulgação
Filmagem de '1917', épico do diretor Sam Mendes Foto: François Duhamel / Divulgação

NOVA YORK — Quando Sam Mendes era um menino, ele e o pai viajavam frequentemente ao Caribe para visitar o avô Alfred Mendes, um romancista. Sam, criado no norte de Londres, achava-o bastante exótico: pequeno e magro, o veterano da Primeira Guerra Mundial cantava ópera com sotaque de Trinidad e Tobago, caminhava pela casa colonial de short e chinelo e cumprimentava vigorosamente cada manhã com um mergulho no mar. Alfred Mendes também tinha a tendência de lavar obsessivamente as mãos, por vários minutos a cada vez, a ponto de Sam e seus primos destacarem isso acima de todas as outras peculiaridades.

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— Ríamos dele — lembra o diretor. — Até que eu perguntei ao meu pai: “Por que o vovô Alfie lava tanto as mãos?” E ele disse: “Ah, ele se lembra da lama das trincheiras durante a guerra, e como nunca conseguia ficar limpo”.

Foi quando os meninos pararam de rir do avô. Foi também quando começaram a perguntar o que aconteceu quando, aos 19 anos, Alfred Mendes se alistou e lutou em nome da Grã-Bretanha no que se tornaria um dos conflitos mais mortais da História.

— Esperávamos casos convencionais de heroísmo e bravura — diz Mendes. — Certamente, não o que ele nos contou, histórias chocantes sobre a total futilidade e o caos.

No set de "1917", o diretor de fotografia Roger Deakins e o diretor do filme, Sam Mendes Foto: François Duhamel / Divulgação
No set de "1917", o diretor de fotografia Roger Deakins e o diretor do filme, Sam Mendes Foto: François Duhamel / Divulgação

Entre as memórias, havia a missão para a qual Alfred se ofereceu em 12 de outubro de 1917, após um terço dos homens de seu batalhão serem mortos na Batalha de Poelcappelle, na Bélgica. Os sobreviventes ficaram presos a muitos quilômetros de distância, e Alfred foi enviado para trazê-los de volta ao acampamento.

— Aquele homem minúsculo no meio daquela vasta extensão de morte, isso eu nunca consegui tirar da cabeça — lembra Mendes.

Foi essa imagem que inspirou “1917”, filme dirigido e co-escrito por Mendes, sobre dois soldados britânicos que percorrem quilômetros no campo de batalha para entregar uma mensagem urgente que pode evitar o massacre de 1.600 companheiros.

Três regras

Quando começou a rascunhar a trama com a co-roteirista Krysty Wilson-Cairns, Mendes estabeleceu três regras. Em vez de adaptar os dramas de seu avô, seguiria dois soldados relativamente anônimos cujo heroísmo seria acidental. A história se passaria na primavera de 1917, quando os alemães se retiraram para a Linha Hindenburg e deixaram um rastro de devastação e armadilhas. E uma característica estética definiria o filme. Mendes escreveu na primeira página do roteiro: “1917” seria apresentado como se tivesse sido filmado de uma vez, em um único plano-sequência.

— Certamente, foi isso o que me empolgou — admite. — Existe sempre o risco de, fazendo filmes, você ficar preguiçoso com a forma. “Sim, eu sei: close-up, por cima do ombro, cena em movimento, corte bacana a cada três cenas”.

George MacKay (Schofield) em cena de "1917" Foto: Universal Pictures and DreamWork / Divulgação
George MacKay (Schofield) em cena de "1917" Foto: Universal Pictures and DreamWork / Divulgação

Mas filmar “1917” em longas tomadas e costurar as cenas de forma imperceptível representaria um desafio. Mendes começou as filmagens em abril, na Inglaterra. Precisava lançar o filme até o Natal, um período curto para um projeto dessa escala.

E, apesar de ter ensaiado extensivamente com o elenco e ter reunido uma equipe vencedora do Oscar nos bastidores, incluindo o diretor de fotografia Roger Deakins e o editor Lee Smith, qualquer imprevisto nessas longas tomadas poderia prejudicar o trabalho de centenas.

— Houve momentos em que pensei: “estou usando tudo o que sei sobre teatro e cinema ao mesmo tempo” — diz Mendes, vencedor do Oscar por “Beleza americana” (1999) e do Tony por “The ferryman” (2019). — Fui ao limite para encontrar soluções.

‘Queria prender o público’

Embora as cenas tenham sido planejadas com precisão, o que acontecia dentro do quadro estava sujeito a alterações, dependendo do clima, da luta dos atores contra a lama ou de como os membros mais suscetíveis do elenco — incluindo vários animais e um bebê — reagiriam à câmera. Quando George MacKay, que interpreta um dos personagens principais, foi acidentalmente derrubado por outro ator durante uma corrida, Mendes manteve a queda no filme.

— Eu queria prender o público aos personagens — conta. — As pessoas percebem que não sairão dessas cenas a não ser que os personagens saiam. Você tem um nível de associação que talvez não existiria se filmássemos de modo convencional.

O diretor Sam Mendes no Globo de Ouro 2020 Foto: FREDERIC J. BROWN / AFP
O diretor Sam Mendes no Globo de Ouro 2020 Foto: FREDERIC J. BROWN / AFP

O esforço valeu a pena. Assim que foi lançado nos EUA, em novembro, o filme começou a gerar rumores de favoritismo ao Oscar. As previsões ganharam força com o troféu de melhor filme de drama no Globo de Ouro e as dez indicações ao prêmio da Academia.

Nas conversas com a imprensa, Mendes aproveita para se despedir do filme e refletir sobre o avô que o inspirou. Quando o cineasta tinha 12 anos, Alfred pediu que ele assinasse um contrato escrito a mão, no qual o garoto prometia escrever seu primeiro romance aos 18 anos.

— Ele me disse: “Você vai contar histórias. Isto é o que você tem que fazer”.