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'Ativismo também é um modo de sobrevivência', diz Céline Sciamma, diretora de 'Pequena mamãe'

Novo filme da diretora de 'Retrato de uma jovem em chamas' chega aos cinemas brasileiros
Céline Sciamma, diretora de "Pequena mamãe" Foto: Claire Mathon / Divulgação
Céline Sciamma, diretora de "Pequena mamãe" Foto: Claire Mathon / Divulgação

Duas garotinhas constroem uma casa na árvore no meio de uma bosque, em pleno outono francês. Por alguma razão, uma coisa parece óbvia: uma é a mãe, a outra é a filha. Foi esta imagem clara, tranquilizadora e, de certa forma, perturbadora, que aparece em um sonho da diretora e roteirista francesa Céline Sciamma, e que foi ponto de partida para a premissa de “Pequena mamãe”, em cartaz nos cinemas brasileiros.

A transição do sonho para o papel foi demorada. A cineasta passou anos com a ideia ocupando sua mente, e trabalhando em outros projetos ao mesmo tempo. Um deles, inclusive, obteve grande reconhecimento internacional: “Retrato de uma jovem em chamas” (2019), vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes e sucesso de crítica.

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Após anos em desenvolvimento, o novo filme acabou impulsionado pelo cenário da pandemia.

— Tenho trabalhado a ideia há anos, mas só comecei a escrever o roteiro logo antes de começar a pandemia, uma semana antes do lockdown na França. A cena de abertura do filme traz uma criança se despedindo de senhoras em uma instituição para idosos. De repente, aquela cena me atingiu de maneira muito pessoal, muito próxima de minha obsessão — diz Céline em conversa via Zoom. — E a própria premissa do filme. A perda de uma avó, esvaziar casas de pessoas que não pôde se despedir, ficou tudo muito próximo da nossa realidade no momento. Foi por isso que o filme foi feito tão rapidamente. Não estava com pressa para fazer outro longa, tinha acabado de sair de um que me fez viajar o mundo. Mas a pandemia me fez escrever e fazer o filme, que foi rodado durante o segundo lockdown na França, em outubro de 2020.

"Pequena mamãe", de Céline Sciamma Foto: Diamond Films / Divulgação
"Pequena mamãe", de Céline Sciamma Foto: Diamond Films / Divulgação

“Pequena mamãe” conta a história de Nelly (Joséphine Sanz), uma menina de 8 anos que acaba de perder sua avó. Ao lado dos pais, ela passa uns dias na casa da avó ajudando a esvaziar o apartamento. Um dia, explorando o bosque ao lado, Nelly conhece uma garotinha de sua idade, e que tem o mesmo nome de sua mãe: Marion (Gabrielle Sanz).

Apaixonada por “De volta para o futuro” (1985), de Robert Zemeckis, e “Quero ser grande” (1988), de Penny Marshall, Sciamma investe em uma história que mescla o olhar infantil com o fantástico e cria sua própria obra de viagem no tempo.

— O fantástico é uma excelente oportunidade de mostrar realidades diferentes na tela. A minha relação com o fantástico é a mesma que minha relação com o cinema, é o que espero de um filme. É a forma como uma obra pode ter um impacto em minha vida ou mesmo ser meu amiga, é como uma história de fantasmas. É sobre criar uma relação especial entre um filme e o público — fala a cineasta de 43 anos.

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Carreira

O olhar da juventude é presença constante na obra de Céline Sciamma. Em seu filme de estreia, “Lírios d'água” (2007), a diretora acompanha um grupo de adolescentes explorando sua juventude e sexualidade. Premiado com o Teddy Award - prêmio voltado para produções de temática LGBTQIA+ - no Festival de Berlim, “Tomboy” (2011) segue uma criança de 10 anos em processo de descoberta e crise de sua identidade de gênero. Já “Garotas” (2014) traz um grupo de meninas adolescentes em um cenário de repressão que se une na tentativa de juntar forças para impor sua voz. Por um período, Céline acredita que o interesse pelo olhar do jovem estava relacionado ao fato dela própria ser jovem ou iniciante na carreira. Mas isso mudou.

— Me sentia próxima de personagens mais jovens. E, como uma realizadora iniciante, também sentia que minha função era experimentar com novas gerações. Agora, penso diferente. Com “Pequena mamãe”, tenho a noção de que crianças são os personagens perfeitos para o tipo de cinema que quero fazer, que envolve um personagem olhando para o mundo como um sobrevivente. — relata. — Com crianças, você não precisa colocar uma narrativa diante delas para que acreditem. O modo como olham o mundo será sempre muito intenso e épico. É o clímax da curiosidade e também o momento em que mais depende de outras pessoas. Essa forma de saber e de olhar as coisas, penso que é perfeita para o cinema que quero produzir.

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É curioso notar que o interesse de Sciamma por um cinema mais intimista e simples vem justamente após o lançamento de seu cultuado “Retrato de uma jovem em chamas”. Engana-se quem pensa que o sucesso e reconhecimento global jogou mais pressão nos ombros da realizadora. Pelo contrário.

— Não sinto pressão pois não tenho interesse em viver as mesmas experiências. Tive a felicidade de vivenciar um blockbuster intimista, experimentar a temporada de premiações, ter a atenção de territórios que jamais poderia imaginar. Sinto que atingi meu objetivo. Por isso me pareceu tão fácil fazer “Pequena mamãe”, pois sei que não vou nunca mais experimentar os mesmos sentimentos ou o mesmo impacto. Acho isso muito tranquilizador. É uma grande posição se sentir livre para inventar — destaca.

Representatividade e ativismo

Sem demonstrar muito interesse em premiações, Céline considera que mais importante que o prêmio em si é o reconhecimento por parte de um júri internacional e a possibilidade de falar com um público maior. Neste sentido, comemora as conquistas recentes das diretoras Julia Ducournau (Palma de Ouro em Cannes por “Titane”), Audrey Diwan (Leão de Ouro em Veneza por “L'événement”) e Carla Simón (Urso de Ouro em Berlim por “Alcarràs”). Ela celebra ainda o fato de receber mensagens constantemente de jovens garotas inspiradas por sua obra e carreira.

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Autodeclarada uma “ativista do cinema”, a diretora marcou sua posição no César 2020 ao abandonar a cerimônia do “Oscar francês”, ao lado da atriz Adèle Haenel, após o prêmio de melhor diretor dado a Roman Polanski, condenado por estupro de incapaz de uma menina de 13 anos após consumo de drogas e álcool numa festa nos anos 70.

— Sou uma ativista e tudo o que faço está preenchido por esta perspectiva. Não é algo que você pare de fazer. Se está em um jantar com amigos e alguém diz algo que você discorda politicamente, você questiona. O ativismo também é um modo de sobrevivência, é uma defesa.

Preocupada com a presente situação na Europa envolvendo o conflito entre Rússia e Ucrânia, Scammia diz não ter ainda uma opinião formada sobre o boicote de filmes e artistas russos por parte de alguns festivais. Com a pandemia, a diretora deixa de frequentar tantos eventos cinematográficos, restringindo o acesso a obras de outros países como o Brasil. Ainda assim, revela que sonha em conhecer o país.

— Adoraria ter uma familiaridade maior com o jovem cinema brasileiro. E é um sonho meu visitar o Brasil, conhecer a indústria, os críticos, os estudantes e os espectadores, que sempre me passaram muito amor e sentimentos através das redes sociais.. Acredito que para entender um local de verdade, você tem que se fazer presente.