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Em 'Cry macho', Clint Eastwood segue desconstruindo a sua própria figura de durão

Aos 91 anos, ator e diretor se mantém imune a modismos e cancelamentos, numa trajetória que combina crítica social e posicionamentos conservadores
Clint Eastwood em cena de 'Cry macho — O caminho para redenção' Foto: Divulgação
Clint Eastwood em cena de 'Cry macho — O caminho para redenção' Foto: Divulgação

São novos tempos, e até o bom e velho Clint Eastwood se adaptou. Em “Cry macho — O caminho para redenção”, que estreia nesta quinta-feira (16) , o ator e diretor americano de 91 anos segue desconstruindo a sua própria figura de durão. Baseado no livro homônimo de N. Richard Nash, o longa conta a história de um ex-campeão de rodeio que aceita, no final dos anos 1970, repatriar do México o filho de seu chefe, que corre risco de vida. A manobra é repleta de obstáculos e, no caminho, o veterano e o jovem criam uma relação que, mais uma vez, é utilizada pelo ator e diretor para rever os modelos de masculinidade e os rumos da sociedade americana.

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A carreira do mais prolífico nonagenário do cinema é cheia de viradas incomuns, sempre provocando nos cinéfilos um misto de idolatria, por seu talento como ator e diretor, e desconfiança, por alguns de seus posicionamentos conservadores. Hoje, os dois lados do artista parecem amplamente aceitos como um só pelos fãs, de todas as idades e correntes políticas.

De Sergio Leone a Dirty Harry

'Dirty Harry': Clint Eastwood encarna policial que tenta rastrear um assassino psicopata Foto: Reprodução
'Dirty Harry': Clint Eastwood encarna policial que tenta rastrear um assassino psicopata Foto: Reprodução

Diferentemente da maioria de seus colegas em Hollywood, Eastwood ficou conhecido graças ao cinema europeu, levado ao estrelato com os westerns spaghettis de Sergio Leone, na década de 1960. De volta aos Estados Unidos, estabeleceu uma longa parceria com o diretor Don Siegel, que incluiu os filmes do violento e “reaça” inspetor Dirty Harry. O papel pegou mal entre os setores mais progressistas.

Só que, com Eastwood, nada é simples. No mesmo período em que chutava hippies e burlava as regras da justiça como o punitivista Harry, ele se dedicava a alguns dos seus trabalhos mais sensíveis. O seu “Honkytonk man” (1982), que ele dirigiu e em que também atuou, foi elogiado por Jean-Luc Godard e eleito um dos melhores do ano pela revista francesa Cahiers du Cinéma, a nata do “filme de autor”.

Tanto Red Stovall, o cantor country de “Honkytonk man”, quanto Mike Milo, de “Cry macho”, fazem parte de uma linhagem de anti-heróis que lutam contra seus próprios demônios. Assim como o pistoleiro aposentado do oscarizado “Os imperdoáveis” (1992); o velho professor de boxe do igualmente premiado “Menina de ouro” (2004); o veterano de guerra preconceituoso de “Gran Torino” (2008); ou o floricultor arruinado de “A mula” (2019). Todos solitários, independentes, teimosos e, quase sempre, fora de sintonia com progressos de sua época.

Figura clássica de masculinidade

Clint Eastwood com Hilary Swank em 'Menina de ouro' Foto: Divulgação
Clint Eastwood com Hilary Swank em 'Menina de ouro' Foto: Divulgação

Para o crítico e cineasta Arthur Tuoto, Eastwood conseguiu se manter fiel a essa figura mais “clássica” de masculinidade porque seus filmes reforçam “aspectos centrais e universais sobre responsabilidade”.

— Mais do que um homem durão, os personagens, principalmente nos filmes das últimas décadas, acabam sempre fazendo o que parece ser a coisa certa. Essa noção moral nunca está acima da imagem do “machão” — comenta Tuoto, que destaca sua permanência inclusive entre espectadores mais jovens. — É uma atração que vem do fato de ele nunca se deixar levar por alguma moda ou tendência estilística passageira.

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Curadora da mostra “Clint Eastwood – Clássico e implacável”, que exibiu 43 filmes em 2011, a produtora Gisella Cardoso acredita que a complexidade que o ator leva aos personagens vem de sua própria personalidade enigmática:

— Há uma contenção na forma de atuar, até quando os personagens parecem prestes a explodir. Mesmo em meio a tanta aridez, ele consegue tornar visível a sensibilidade daqueles homens. Quando Clint traz para a tela o que é contraditório nele, acaba expondo as dissonâncias da sociedade americana.

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Envelhecendo diante da câmera

Clint Eastwood em cena do filme 'A mula' Foto: Divulgação
Clint Eastwood em cena do filme 'A mula' Foto: Divulgação

Doutorando em História, Lucas Henrique Reis analisou em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) questões como identidade nacional e masculinidade em “Gran Torino” e “Sniper americano” (2014) . O professor acredita que Eastwood usou seu próprio envelhecimento diante da câmera para destacar o anacronismo do cowboy e de outros papéis de durões:

— Se as plateias da primeira metade do século XX eram receptivas ao tipo que incorporava o mito expansionista americano, nas décadas seguintes o personagem teve de dialogar com a mudança da identidade nacional do país. Quando Eastwood explora as marcas do tempo no seu rosto na tela, reflete sobre um projeto de nação e masculinidade que não se integra mais ao presente.

Se os jovens aprenderam a amar Eastwood pelo que ele é, os mais velhos seguem se identificando. O ator Francisco Cuoco, 87 anos, que já fez diversos personagens machões ao longo da carreira, considera o ator e diretor um “gigante”. Ainda que valorize as mudanças de paradigma da atualidade, ele continua se vendo mais próximo dos papéis com modelos masculinos tradicionais.

— Eu não saberia fazer um cowboy gay, por exemplo, embora estejamos vivendo um tempo de arco-íris. Tempos de evolução — diz o ator.