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Bertolucci, o encontro do marxismo com a psicanálise

Cineasta italiano morreu nesta segunda-feira, aos 77 anos
Bernardo Bertolucci no Festival de Veneza, em 2013 Foto: Alessandro Bianchi / REUTERS
Bernardo Bertolucci no Festival de Veneza, em 2013 Foto: Alessandro Bianchi / REUTERS

RIO — Bernardo Bertolucci foi um filho do cinema, mas com pai e mãe emprestados de outras disciplinas: o marxismo e a psicanálise. Foi em 1969, quando o diretor — filho mais velho de uma professora e de um poeta, nascido em 16 de março de 1941, durante o fascismo de Mussolini — se filiou ao Partido Comunista da Itália e passou a ver regularmente uma analista. Seu cinema foi e seria uma consequência desse encontro entre Marx e Freud. Bertolucci buscou, com sua arte, condenar a tirania do fascismo ao mesmo tempo em que expunha desejos e obsessões da burguesia da qual fazia parte.

Justamente no 1968 em que os jovens tomaram as ruas de alguns cantos do mundo para se fazerem ouvir, ele havia lançado no Festival de Veneza "Partner", um filme inspirado em "O Duplo", de Dostoiévski, sobre um apaixonado professor de teatro que instiga seus alunos a se manifestarem politicamente.

Pouco antes, em 1964, lançara "Antes da revolução", contando a história de um estudante burguês que se apaixonou pela tia enquanto começava a se interessar pelo marxismo. Ambos os filmes expunham os temas caros a um seguidor do francês Godard e do italiano Pasolini: a transgressão, coletiva ou individual, utilizada como arma para se enfrentar o autoritarismo.

"O conformista" (1970), seu primeiro clássico, baseado no romance de Alberto Moravia, trouxe como protagonista um burocrata, com uma história de abuso homossexual na juventude, que age a mando do governo fascista contra um ex-professor comunista. Já "O último tango em Paris" (1972), outro clássico, foi a subversão da ideia do sexo como consequência de amor e comprometimento. Para quem só se recorda da tal cena da manteiga de Marlon Brando em Maria Schneider, "O último tango" contava a história de um americano que se relacionava com uma francesa bem mais nova: eles transavam sem que pudessem revelar seus nomes, suas histórias, nenhuma intimidade que não fosse a conjunção de seus corpos. A censura odiou. A História o imortalizou.

O épico "1900" (1976) retratou a luta de classes na Itália com a lindíssima fotografia de Vittorio Storaro, um colaborador habitual de Bertolucci; enquanto o intimista "La luna" chocou com a relação incestuosa entre mãe e filho. "O último imperador" (1987) foi o filme que levou Bertolucci a Hollywood, vencendo 9 Oscars ao retratar a biografia de Puyi, o nobre chinês que foi coroado ainda criança, mas acabou preso por uma década pela China de Mao Tsé-Tung.

"O céu que nos protege" (1990), "Beleza roubada" (1996), "Assédio" (1998) e "Eu e você" (2012) lidaram com paixões, ciúmes e desejos. "Os sonhadores" (2003), por sua vez, foi a melhor representação recente dos temas que tornaram Bertolucci uma força do cinema. Nele, três jovens dividiram um apartamento de Paris em 1968, enquanto bombas explodiam nas ruas tomadas por outros jovens. Para o trio, sua expressão sexual era tão importante quanto a luta política. "Os sonhadores" abordou essa separação entre o interior de um apartamento rico que protegia seus moradores das preocupações sociais e o exterior de um mundo conflagrado pela necessidade de mudanças.

Num diálogo de "Os sonhadores", o pai de um dos protagonistas expõe o que parecia ser o pensamento de Bertolucci: "Antes de poder mudar o mundo, você precisa compreender que você, você mesmo, é parte dele. Não dá para ficar de fora olhando para dentro".

Morto nesta segunda-feira, em 26 de novembro de 2018, aos 77 anos, Bernardo Bertolucci procurou em vida seguir o próprio conselho e buscou, através do cinema, olhar o mundo de dentro.