Cultura Filmes

Documentário revê a conturbada trajetória de Nina Simone

Com farto material inédito, ‘What happened, Miss Simone?’ estreia hoje na Netflix

A cantora num dos momentos de ‘What happened, Miss Simone?’, dirigido por Liz Garbus
Foto:
/
Divulgação
A cantora num dos momentos de ‘What happened, Miss Simone?’, dirigido por Liz Garbus Foto: / Divulgação

RIO - Numa conversa com um repórter em 1972, Nina Simone afirma: “Quando faço um show, quero abalar de tal forma as pessoas que elas saiam do local em pedaços”. No documentário “What happened, Miss Simone?”, que estreia hoje na plataforma de streaming Netflix e onde a categórica declaração pode ser vista, são os pedaços da conturbada personalidade da própria cantora americana (1933-2003) que são, cuidadosamente, remontados pela diretora Liz Garbus.

Contando com imagens inéditas, diários e cartas — boa parte do acervo cedida pela família, tendo à frente a filha, Lisa Simone Kelly — além de entrevistas com amigos e colaboradores, o filme escapa do tom meramente celebrador e traça um denso painel de uma artista de extremos, tão genial quanto geniosa, tão amada quanto rejeitada, que lutou, radicalmente, contra o racismo no seu país e que, ironicamente, é conhecida por boa parte do público por uma música utilizada em um comercial de perfumes nos anos 1980, “My baby just cares for me”, de 1958 (que Nina rejeitava).

— Eu mesmo achava que conhecia Nina Simone, por conta de algumas poucas músicas, mas acabei descobrindo, ao longo da produção do filme, um personagem incrível, complexo e multifacetado — conta a diretora. — Assim como eu, imagino que muitas pessoas vão descobrir que existe muito mais sobre ela do que imaginávamos.

O momento é apropriado para descobrir mais sobre a atormentada diva, uma das cantoras preferidas do presidente americano Barack Obama. Além de um disco tributo, ligado à produção da Netflix, “Nina Revisited”, com participações de Mary J. Blige, Lauryn Hill, Usher e Common, que sai em julho, há outro documentário no horizonte, “The amazing Nina Simone”, dirigido por Jeff Lieberman, previsto para o segundo semestre deste ano, e também um filme inspirado em sua vida, “Nina”, cuja estreia tem sido adiada desde o ano passado, por disputas judiciais entre a diretora, Cynthia Mort, e os produtores, além de ter sido tema de controvérsia por conta da escolha da atriz Zoë Saldaña para o papel principal.

Mesmo sem grandes inovações no formato, o documentário de Liz Garbus tem na força do material de arquivo o seu maior trunfo, desde os primeiros passos de Eunice Waymon (o verdadeiro nome de Nina), talento precoce de Tyron, na Carolina do Norte, que aprendeu a tocar piano clássico aos três anos e aos 12 já dava seu primeiro concerto. Ao ter, porém, seu acesso negado ao Curtis Institute of Music, na Filadélfia, onde pretendia se aprofundar no instrumento, ela teve o primeiro contato com o racismo, num episódio que a marcou para sempre.

O filme mostra como, a partir dali, Nina é forçada a tocar (e cantar) em bares para sobreviver, forjando seu estilo único, unindo jazz, blues e soul ao seu background clássico. Logo conhece o ex-policial Andrew Stroud, que se tornaria seu empresário e, depois, marido. Mas a chegada do sucesso, com “I loves you, Porgy”, em 1959, não impede que a relação entre os dois torne-se turbulenta, com a cantora sendo vítima de constantes espancamentos.

A explosão de uma igreja em Birmingham, Alabama, em 1963, por grupos racistas, que matou quatro estudantes negras, inflama Miss Simone, que compõe a sombria “Mississippi goddam”, boicotada pelas rádios do sul dos EUA. Daí em diante, Nina aprofunda-se na militância política (“a raiva era o que movia a minha mãe”, admite Lisa Simone no filme), deixando de lado o apelo comercial de sua carreira, para irritação de Stroud, de quem acaba se separando.

— Foi importante conseguir mostrar Nina Simone como ela era, com todos os dramas que viveu, sem qualquer tipo de censura por parte da família — destaca Liz.

“What happened, Miss Simone?” acompanha a cantora em irados pronunciamentos públicos (“vocês estão prontos para queimar prédios?”, pergunta durante um show, para uma plateia predominantemente negra), segue seu exílio na Libéria e depois na França, acompanha sua volta aos EUA no final dos anos 1970, falida, mostra a descoberta da sua bipolaridade (explicação para seu desequilíbrio emocional, muitas vezes demonstrado em cima dos palcos) e a retomada de sua carreira até a morte, em 2003, aos 70 anos.

— Consigo imaginar Nina, hoje, cantando no funeral dos mortos na igreja em Charleston — conta a diretora, referindo-se ao atentado racista ocorrido na semana passada nos EUA. — Infelizmente, o tema pelo qual ela deu sua vida continua a nos assombrar. Por isso, acredito que a voz e a música de Nina Simone continuam incrivelmente relevantes.