RIO - À primeira vista, pode soar frustrante para cinéfilos e admiradores descobrir que “David Lynch — A vida de um artista”, sobre o processo criativo do realizador americano, termine ainda nos primeiros esboços de “Eraserhead” (1977), longa de estreia de uma filmografia icônica. Mas é um corte cronológico milimetricamente estudado. O documentário dos estreantes Jon Nguyen, Olivia Neergaard-Holm e Rick Barnes, que chegou às salas brasileira na última quinta-feira, detém-se sobre os anos de formação do autor de “Coração selvagem” e “Twin Peaks”: a infância e a juventude itinerante por cidades do interior, a paixão pela pintura e pela música, antes de tomar o caminho do cinema.
— Queríamos oferecer elementos-chave para o espectador entender como David é como ser humano, desmistificar a personalidade que só conhecemos através de seus filmes, considerados sombrios, fantasmagóricos — explicou Olivia durante o Festival de Veneza do ano passado, onde “A vida de um artista” teve sua première mundial. — Nossa intenção era também mostrá-lo como o artista multifacetado que é, que pinta quadros lindos, que nos contam histórias. Não tínhamos ambição de fornecer respostas definitivas sobre David, mas dividir com o público histórias sobre o cineasta que, de alguma forma, ecoam até hoje em sua obra.
“A vida de um artista” é um inédito convite à intimidade de Lynch, que surge trabalhando em novas pinturas e esculturas no imenso ateliê de sua casa, nas colinas de Hollywood — não muito distante das locações de “Cidade dos sonhos” (2001). As memórias são reforçadas por inúmeras fotografias e trechos de uma quantidade impressionante de filmes caseiros, que revelam menos sobre as ambições do futuro cineasta, e mais sobre o estilo de vida de um artista em gestação. O documentário é dedicado à pequena Lula, a filha mais nova do realizador de 71 anos, nascida em 2012, fruto da união com a atriz Emily Stofle.
A ideia de construir um retrato intimista do diretor nascido no estado de Montana surgiu pouco mais de dez anos atrás, quando Nguyen produzia o documentário sobre os bastidores de “Império dos sonhos” (2006). O câmera e diretor de fotografia Jason S. teve papel fundamental no processo de conquista da confiança de Lynch. Ele praticamente morou na casa do diretor ao longo dos dois anos e meio em que as entrevistas e imagens foram colhidas. Graças a essa intimidade, a equipe conseguiu extrair histórias reveladoras e inquietantes sobre o passado do diretor, como o primeiro dia de aula numa escola da Virgínia, durante um furacão, ou a ocasião em que uma mulher completamente nua, com a boca suja de sangue, cruzou a propriedade da família, indiferente aos olhares dos vizinhos.
— A quantidade de material filmado no estúdio de David, de fotografias e de vídeos caseiros que ele nos ofereceu, era imensa — disse Olivia. — A questão era nos debruçarmos sobre aquele material filmado e escolher o que combinava com os áudios. Há momentos preciosos, em que ele está pintando um inseto, e fazendo aqueles gestos com as mãos. É quando as coisas começam a se conectar na nossa cabeça, pegar o pedaço de arte que parece ter o mesmo sentimento ou a textura da história que ele está narrando, e combiná-las.
Até os diretores foram pegos de surpresa por algumas descobertas.
— Não tinha a menor ideia do tempo que David dedica à pintura, ao trabalho em seu ateliê — confessa Nguyen. — É dia e noite, noite e dia. E descobri que ele faz isso desde sempre, quando não está filmando. Fizemos o documentário em um momento muito produtivo da vida dele como pintor. Houve um intervalo de dez anos entre “Império dos sonhos” e a nova temporada da série “Twin Peaks”, que ainda está no ar. Nesse tempo todo ele esteve pintando e esculpindo, que é sua primeira paixão. Ele mesmo diz que se considera primeiro um pintor; o cineasta vem depois.