Cultura Filmes

Em 'Belfast', indicado a sete Oscars, Kenneth Branagh volta à infância pra reviver horrores da guerra civil

‘Evitei voltar ao passado de forma infantilizada, mas fico feliz em perceber que soube, creio, reconhecer e retratar quem eu era’, diz diretor
Cena de 'Belfast', filme de Kenneth Branagh, com Caitriona Balfe e Jamie Dornan Foto: Rob Youngson / Focus Features / Rob Youngson / Focus Features
Cena de 'Belfast', filme de Kenneth Branagh, com Caitriona Balfe e Jamie Dornan Foto: Rob Youngson / Focus Features / Rob Youngson / Focus Features

Em uma tarde veloz, a vida numa rua humilde na capital de um país europeu é radicalmente alterada. Brincadeiras de crianças a céu aberto são substituídas por barricadas improvisadas e um mix de pavor e fascínio por milícias armadas. Bate-papos de vizinhos em cadeiras espalhadas sem fronteira clara pelas calçadas dão lugar à desconfiança do próximo. A sequência de cenas, partida dramática de “Belfast”, indicado a sete Oscars (filme, diretor, ator e atriz coadjuvantes, roteiro original, música e edição de som), a partir de hoje nos cinemas brasileiros, se tornou tragicamente mais próxima do espectador com a invasão russa da Ucrânia. E a sensação de que tudo agora mesmo pode estar por um segundo.

Racismo: Ryan Coogler, diretor de 'Pantera Negra', é acusado de tentar assaltar banco ao solicitar saque da própria conta bancária

Na semana passada, a irlandesa Caitriona Balfe, destaque como a dona de casa que tenta proteger sua família e resiste em abandonar Belfast enquanto o marido (um ótimo Jamie Dornan) ganha o pão na Inglaterra, lamentou o fato de um filme de época ter ficado tão atual:

“Meu coração está com as mulheres e mães ucranianas debatendo, em pleno 2022, se ficam para defender sua terra ou se partem para o desconhecido em busca de esperança para suas famílias”.

Quase todo em branco e preto, “Belfast” é o projeto mais intimista de sir Kenneth Branagh, diretor e ator britânico de 61 anos. Ele era pré-adolescente quando sua família atravessou o Canal do Norte e o Mar da Irlanda rumo a um subúrbio de Londres, longe da Irlanda do Norte em chamas de agosto de 1969.

— Durante a pandemia,ficou claro para mim que o futuro é preenchido por incertezas. Lembrei claramente do outro lockdown que vivi, há meio século, em Belfast, quando havia perigo na esquina. Eu estava chegando aos 60 e tinha que contar, não podia mais esperar, a história daquele menino — disse Branagh.

Nova animação da Pixar: 'Abrace sua fera interior', recomenda diretora de ‘Red: Crescer é uma Fera’

Criatura singular do universo das artes, igualmente interessado em Shakespeare e heróis da Marvel, passando por Agatha Christie, Branagh não se propõe, em “Belfast”, a explicar com didatismo os Troubles . O termo é usado para identificar conflitos que duraram três décadas, tiraram a vida de mais de 3.500 cidadãos e opuseram defensores da permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido (em sua maioria protestantes) a republicanos (católicos), partidários da unificação da ilha da Irlanda.

— Uma pessoa que leu o roteiro me aconselhou a ser mais político — contou Branagh, que reagiu: — Como assim? Sentiu falta de especialistas de meia idade vaticinando sobre o que aconteceu? Lembro é de nossa angústia em saber quando a rua voltaria ao normal. E de como estar em estado permanente de alerta aumentava, paradoxalmente, nossa necessidade de sorrir.

O núcleo do filme é a família formada por, além de Balfe e Dornan, seus três filhos, os avós paternos ( dame Judi Dench e Ciáran Hinds, que disputarão estatuetas) e poucos vizinhos. A câmera se movimenta no piscar d’olhos de Buddy, o menino de 9 anos vivido por Jude Hill. Alter ego de Branagh, é por meio de sua sensibilidade que o diretor revela o fim da inocência imposto pela irracionalidade da guerra.

'Besouro Azul': Bruna Marquezine fará filme da DC, diz site

Assim como o diretor, Dornan, Hinds e Hill são da Irlanda do Norte, e a música é do local Van Morrison. Seu clássico “Astral weeks", lançado em 1967, tocava sem parar na vitrola da casa dos Branagh.

Tocado após ler o roteiro, o bardo irlandês compôs em três semanas “Down to joy”, indicada ao Oscar, e um tema instrumental. O som, a dança e o cinema (faz-se um hiato no preto e branco quando Buddy vê “O calhambeque mágico” na tela grande) são as redenções possíveis em “Belfast”.

Saudado pela crítica (com alguma chiadeira sobre o que seria uma narrativa açucarada demais), “Belfast” só saiu do papel depois que Bill e Joyce, irmãos do diretor, aprovaram o que leram:

— Joyce me emocionou ao dizer que, com “Belfast”, eu me expus de tal maneira que ela pôde, de fato, me ver. E que o filme era, assim, um outro eu — disse Branagh.

Aos 87 anos, Judi Dench, em sua sexta parceria com Kenneth Branagh, protagoniza cena de despedida que resume o liquidificador de emoções do diretor em relação à sua cidade natal.

Musa dos pés descalços: Documentário mostra como Cesária Évora saiu de Cabo Verde para conquistar o planeta

A câmera descansa na face da atriz observando a família partir de Belfast seguida de tributo “aos que ficaram e resistiram, aos que buscaram novos horizontes, e aos que pereceram” durante os conflitos.

Desde 2012 às voltas com um mal degenerativo que dificulta o reconhecimento facial, era ainda mais complicado para Dench distinguir os parceiros de set com suas máscaras anti-Covid. O que ela garante ter identificado com clareza durante as filmagens foi “o exercício catártico” de Branagh. O reencontro na ficção com o menino que calcou o artista modificou para sempre a vida do amigo de longa data.

— Evitei voltar ao passado de forma infantilizada, mas fico feliz em perceber que soube, creio, reconhecer e retratar quem eu era. O público agora saberá que não surgi do nada em uma universidade inglesa com um manuscrito de Shakespeare debaixo dos braços e rumei de lá para Hollywood — brincou o diretor. —Agora, catártico? Não sei. Certamente foi uma experiência libertadora. Como diz um amigo meu, com “Belfast”, “saí do armário”.

Céline Sciamma: 'Ativismo também é um modo de sobrevivência',  diretora de 'Pequena mamãe'

Libertação personificada pelo Buddy do estreante Jude Hill, 11 anos, desde os 5 um ás em dança folclórica irlandesa. O ator, que vive em uma cidade nos arredores de Belfast, rouba a cena. Em alguns momentos, o que se vê, inclusive, são takes pensados como ensaios. Branagh ficou tão impressionado com a espontaneidade de Hill que os manteve no corte final.

— Queria registrar o delírio de um menino vendo pela primeira vez “O calhambeque mágico”, com sua avó sussurrando coisas engraçadas em seu ouvido, fazendo cosquinha. Filmei direto, sem ensaio — contou o diretor.

“Belfast” pode ser percebido como um primo de “Roma”, do mexicano Alfonso Cuarón, sem, no entanto, ambicionar ser cinema de autor. O cenário aparentemente limitado se revela uma galáxia para o que Branagh deseja tratar, mas o diretor passa — sem deixar de mostrar, por exemplo, civis preparando coquetéis molotov — longe do comentário social de Ken Loach.

Boa parte dos momentos em que “Belfast” esbarra na epifania estão justamente nas ações mais ordinárias de Buddy: quando ele brinca na rua ao som de “Days like this” de Van Morrison; ao curtir “Jornada nas estrelas” na tevê; ao ser convencido a roubar uma guloseima na bodega do bairro; ao ser repreendido pela mãe ao se juntar a um saque ao supermercado em meio ao caos.