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Filme 'Que horas ela volta?' motiva reflexão sobre como o cinema atual retrata a busca por cidadania

Longa estrelado por Regina Casé mostra relação de patrões com domésticas no país
Regina Casé (à esquerda) e Karine Teles vivem empregada e patroa Foto: Aline Arruda/Divulgação
Regina Casé (à esquerda) e Karine Teles vivem empregada e patroa Foto: Aline Arruda/Divulgação

RIO - Em determinado momento do filme “Que horas ela volta?”, Jéssica (interpretada por Camila Márdila) diz que quer muito ler um determinado livro. A obra, que aparece de relance, é “Viva o povo brasileiro”, clássico de João Ubaldo Ribeiro que tenta recontar a História brasileira pelo ponto de vista dos excluídos — pobres, negros, índios, mulheres. Em cartaz desde quinta, 27, o longa de Anna Muylaert, que já levou prêmios nos festivais de Berlim (melhor filme da mostra Panorama) e Sundance (melhor atriz da seção World Cinema, dividido entre Camila e a protagonista Regina Casé), segue o mesmo caminho proposto pela obra de Ubaldo ao retratar de forma sutil, e ao mesmo tempo incisiva, o apartheid social no país.

O longa traz para o centro da discussão a trajetória da empregada doméstica Val, numa atuação muito elogiada de Regina, potencial candidata do Oscar na categoria, segundo revistas especializadas internacionais. A personagem é uma pernambucana que deixa a filha em sua cidade natal para trabalhar em São Paulo na casa de uma família de classe média alta. Lá, obedece a uma lógica passiva que só é abalada quando Jéssica chega para fazer vestibular.

— O filme é a tentativa de mostrar o poder dessas figuras invisíveis — diz Anna Muylaert, acrescentando que esse projeto está sendo maturado há 20 anos, tempo em que ela ficou à espera do tom exato para contar a história dessa personagem, a trabalhadora doméstica, que muitas vezes foi retratada na cinematografia brasileira de maneira superficial. — O filme só poderia existir agora. Há 30 anos, ele seria uma comédia rasgada, em que as pessoas não seriam tocadas.

“Temas prosaicos e densidade reflexiva”

Após os conceitos de “estética da fome”, ligado ao Cinema Novo, e o “cosmética da fome”, referência às produções que foram criticadas por mostrar a favela e a violência como um fetiche, uma nova onda em voga, uma espécie de “estética da pós-fome”, mostraria um país que não é mais miserável, mas que ainda tem dívidas históricas profundas a pagar, como o racismo. Para o psicanalista e professor da USP Christian Dunker, que lançou recentemente “Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros” (Boitempo), livro que cita diversos filmes para falar da privatização do espaço público, “Que horas ela volta?” é um exemplo poderoso da tal onda. Ele acredita que a ruptura se deu com “O som ao redor” (2013), de Kleber Mendonça Filho.

— Atingindo ricos e novos ricos, antigas e novas classes médias, a disputa cultural acirrou-se como nunca. É comum um processo de afirmação exagerada das origens: a música da laje, o rock da periferia, o funk. O “novo cinema novo” parece ter percebido isso e age misturando temas prosaicos com alta densidade reflexiva, alcançando os dois públicos — reflete Dunker, citando algumas particularidades desta tendência: o aumento do número de produções com perspectivas femininas, de orçamentos mais baixos, com influência dos vídeos da internet, e a retomada de um experimentalismo. — Em “Que horas ela volta?”, não se trata mais de ressentimento ou vingança como um sentimento difuso de mal-estar, mas do ódio em estado puro: do incômodo (de certos membros das classes mais altas) com o “direito do outro” de viajar, de expressar gostos e opiniões.

O antropólogo e professor da UFF Marcos Alvito, estudioso das manifestações culturais, esportivas e religiosas das camadas mais pobres, é mais duro. Diz que as classes ricas seguem ainda uma lógica que poderia ser descrita como a repetição de “Casa grande & senzala”, clássico de Gilberto Freyre da década de 1930 que tenta fazer uma interpretação totalizante do Brasil.

— No Rio, por exemplo, o “zonasulista” tem concepções limitadas. Não conhece a própria cidade — diz Alvito, fazendo questão de ressaltar que as favelas também não são exemplos de um paraíso idílico perdido, mas áreas tão complexas como qualquer outra. — A caracterização paternalista (nas artes) é também violenta.

Curador da Cinemateca do MAM, Hernani Heffner lembra de um exemplo que trata de assunto parecido, mas com uma virada quase oposta: “O céu de Suely”, longa de Karim Aïnouz de 2006. No filme, a personagem de Hermila Guedes, a nordestina Suely, também vai para São Paulo, mas não aceita ser doméstica.

— Se o Brasil entrou de fato no mundo capitalista, depois de tanta discussão nos anos 1960-70, Suely sabe qual é a regra do jogo. Hermila/ Suely é a consciência deste momento. Ela recusa o papel, e vai para outra dimensão — argumenta Heffner, reforçando o papel ativo da personagem, que depois opta por, inclusive, rifar o próprio corpo.

PRODUÇÃO DA PERIFERIA: RICA E AINDA À MARGEM

Se não é fácil determinar o marco inicial desse possível movimento novo, há até quem critique se essa temática poderia marcar uma ruptura. É o caso de Adriana Facina, professora de Antropologia da UFRJ. Para ela, o único movimento estético relevante nos momentos atuais seria o produzido nas próprias periferias, que tem circulação restrita e raramente chega a festivais e cinemas tradicionais.

— Essa produção é incrivelmente inovadora e tem um circuito próprio. Os cineclubes e festivais se multiplicam nas favelas e periferias brasileiras — diz Adriana, citando “Branco sai, preto fica”, de Adirley Queirós, como um dos poucos filmes que ultrapassam essa barreira.

A cineasta Anna Muylaert resume uma mudança de ponto de vista. Se antes havia a expectativa de ascensão social, um crescimento que ela associa com a perspectiva masculina, agora há a busca pelo direito à cidadania.

— Aprendemos na escola que apenas os poderosos escrevem a História, e esse poderoso é sempre o homem, que valoriza determinados aspectos, como o poder. Quis fazer um filme mais feminino, mostrar o trabalho da mãe, que é o trabalho mais importante que há.

RELEMBRE DOMÉSTICAS NO CINEMA BRASILEIRO

Por Hernani Heffner, curador da Cinemateca do MAM:

*Chanchada - “A personagem está presente no cinema brasileiro desde os anos 1930. Na década de 1950, Zezé Macedo, por exemplo, a interpreta com frequência, jamais como protagonista.”

Cena do filme 'Como é boa nossa empregada' 1973) Foto: Divulgação
Cena do filme 'Como é boa nossa empregada' 1973) Foto: Divulgação

*Pornochanchada - “O trabalhador doméstico se torna um personagem símbolo do gênero, em filmes como ‘Como é boa nossa a empregada’ (com Jorge Dória e Aizita Nascimento).”

*Cinema marginal - “‘Cuidado, madame’, de Julio Bressane, explicita todo o viés de dominação social pervertida dessa função. Em ‘Copacabana, mon amour’, Rogério Sganzerla carrega nas tintas para mostrar os muitos resquícios da escravidão na profissão até hoje.”

*Retomada - “O mais famoso do período é o longa ‘Domésticas’, de Fernando Meirelles, mas o curta ‘Recife frio’, de Kleber Mendonça Filho, inverte a expectativa usando o quartinho de empregada como centro de disputa.”

*Anos 2010 - “O documentário ‘Doméstica’, de Gabriel Mascaro, retrata um conjunto de personagens, sendo um masculino, fugindo dos estigmas da profissão.”