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Lei americana que pune boicotes a Israel é tema de filme de diretora brasileira

"Foram leis aprovadas sem discussão na mídia, sem que os cidadãos soubessem o que estava acontecendo", explica Julia Bacha
Cena do documentário "Boycott", de Julia Bacha Foto: Divulgação / Just Vision
Cena do documentário "Boycott", de Julia Bacha Foto: Divulgação / Just Vision

AUSTIN, TEXAS — A pergunta é feita por um jornalista do 48º estado americano em receita — de uma lista de 50. Alan Leveritt quer saber o que uma lei que trata do boicote a Israel tem a ver com o Arkansas.

Como mostra o documentário “Boycott”, da brasileira Julia Bacha, o questionamento é possível também em Texas, Arizona e outros 30 estados americanos. A polêmica legislação, que foi sendo aprovada em congressos estaduais a partir de 2014, determina que empresas e indivíduos que promovem algum tipo de boicote a Israel não podem estabelecer contratos com órgãos públicos, e teriam que assinar um termo de compromisso sobre o assunto. Vale tanto para uma companhia de petróleo quanto para uma servente de escola.

— Foram leis aprovadas sem discussão na mídia, sem que os cidadãos soubessem o que estava acontecendo — explica Bacha, cineasta que vive em Nova York, diretora do premiado “Budrus” (2009) e que há 17 anos pesquisa e realiza trabalhos sobre o conflito Israel-Palestina.

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“Boycott” estreou em festivais dos Estados Unidos e acaba de ser exibido no South by Southwest, famoso evento americano que reúne filmes, shows e debates sobre tecnologia, política e inovação, em Austin, Texas. O documentário vem se destacando ao mostrar histórias de americanos comuns lutando contra a tal lei antiboicote.

Liberdade de expressão

Na compreensão de muitos, inclusive de juízes que já proferiram decisões contrárias à norma, tratava-se de uma medida que fere a liberdade de expressão, garantida pela Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos.

— Muita gente faz confusão sobre a proteção da Primeira Emenda ou de outras leis sobre liberdade de expressão em outros países. É preciso ficar claro que a Primeira Emenda protege você de censuras ou repressão de governos, por isso foi usada nos casos contra a lei anti-boicote — explica Bacha. — Mas ela não interfere em movimentos sociais que lutam por Justiça e pelo progresso. “Cancelar” uma pessoa por algo que ela disse não é ferir a Primeira Emenda.

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São três os personagens principais de “Boycott”. No Arkansas, o já citado jornalista Alan Leveritt tem conhecimento da lei quando a universidade estadual exige sua assinatura no documento antiboicote para continuar recebendo anúncios no jornal em que é editor, o Arkansas Times. No Texas, a fonoaudióloga Bahia Amawi, que é muçulmana, se recusa a assinar e é demitida de uma escola pública. No Arizona, o advogado Mikkel Jordahl é confrontado com a cláusula no momento em que vai renovar o contrato de apoio jurídico à população carcerária.

— Meus filmes tratam de situações difíceis, mas com personagens que estão dispostos a tomar grandes riscos para criar uma realidade melhor — afirma a diretora. — A gente descobriu que muita gente entrou com ações contra a lei.

Julia Bacha entrevista o senador estadual Bart Hester no Arkansas durante filmagem de "Boycott" Foto: Divulgação / Suhad Babaa
Julia Bacha entrevista o senador estadual Bart Hester no Arkansas durante filmagem de "Boycott" Foto: Divulgação / Suhad Babaa

Para entender o contexto que o documentário aborda, é preciso voltar um pouco no tempo. O boicote contra Israel se transformou numa ação organizada em 2005. A proposta, inspirada nos movimentos antiapartheid da África do Sul, era pressionar o governo israelense a encerrar as ocupações nos territórios palestinos, a reconhecer os direitos dos palestinos árabes que vivem em Israel e a permitir que refugiados palestinos retornem a suas terras.

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O apoio costuma vir de instituições e personalidades mais ligadas a um pensamento de esquerda, como a ativista Angela Davis, o cantor Roger Waters, a filósofa Judith Butler e o recém-empossado presidente do Chile, Gabriel Boric. Mas há também adesões de empresas. No ano passado, a fabricante de sorvete Ben & Jerry’s anunciou que deixaria de distribuir seus produtos em territórios palestinos ocupados por Israel, o que foi encarado como uma vitória do movimento pró-boicote.

Ação e reação

Mas, como sempre acontece, há reações para todas as ações. Além de acompanhar a luta judicial de seus três protagonistas, o documentário de Bacha vai a Tel-Aviv seguir a investigação do jornalista israelense Itamar Benzaquen. Ele publicou reportagens que mostraram como o Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel financiou instituições nos Estados Unidos e em outros países que fizessem lobby contra o boicote.

— Eu entrei em contato com o Itamar pela primeira vez há quatro anos e fomos acompanhando sua investigação. Ele tinha feito um pedido de acesso a informações, que vinha sendo negado sempre. Até a mudança de governo em Israel, no ano passado. Quando o Benjamin Netanyahu perde as eleições e deixa de ser primeiro-ministro, o novo governo entrega os documentos — recorda Bacha.

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No documentário, é exposta a relação próxima entre igrejas evangélicas e o governo de Israel. Uma cena que chama atenção é a de John Hagee, evangélico que transmite seus cultos para milhões de pessoas na TV dos EUA e que foi grande apoiador de Donald Trump, recebendo Netanyahu em videoconferência para falar a seus fiéis. Na política, um dos grandes defensores da lei antiboicote que o filme retrata é o senador estadual Bart Hester, do Arkansas, evangélico que usa o argumento da sua fé cristã para criticar o boicote.

Considerando a aproximação recente de políticos e grupos evangélicos brasileiros com Israel, é impossível não traçar um paralelo.

— Eu pensei muito no Brasil, nessa relação dos evangélicos chegando ao poder e com a viagem do Bolsonaro a Israel. Em como a religião pode influenciar a política externa de um país — diz a diretora. — Mas não encontramos citações a instituições financeiras do Brasil que receberam recursos do governo israelense. Isso não quer dizer que não aconteceu, partes do material nos foram entregues incompletas.

Após o SXSW, “Boycott” continua sua peregrinação por festivais. Ainda não há data para exibição no Brasil.