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Na era do #MeToo, Hollywood cria uma nova profissão: os 'coordenadores de intimidade'

Profissionais propõe código de conduta prevendo que todas as cenas de sexo sejam coreografadas
A coordenadora de intimidade Ita O'Brien durante uma oficina em Sydney, na Austrália Foto: DEAN SEWELL / NYT
A coordenadora de intimidade Ita O'Brien durante uma oficina em Sydney, na Austrália Foto: DEAN SEWELL / NYT

SYDNEY (Austrália) — Na luz suave da tarde, homens e mulheres se dividem em grupos, suas imagens refletidas em espelhos que vão do chão ao teto. Alguns se beijam, acariciam uns aos outros. Outros tocam as pontas dos dedos do próximo. Não se trata de uma boate ou uma orgia. Os homens e mulheres são atores, e estão participando de um "workshop de intimidade", parte de uma tendência crescente de criar espaços seguros nas indústrias teatral e cinematográfica.

No comando está Ita O'Brien, uma “coordenadora de intimidade”. Ex-dançarina e diretora, ela — junto com outros “coordenadores” e dublês especializados — vem ganhando espaço numa indústria que lida com as consequências do movimento #MeToo.

A londrina O'Brien, de 53 anos, já prestou seus serviços para empresas como HBO e Netflix. E sua abordagem, cada vez mais demandada em todo o mundo, encontrou uma ressonância particular na Austrália, onde o sexismo persiste numa cena cultural que tende a ser insular — e foi recentemente criticada por proteger o status quo.

Acusações de conduta sexual imprópria agitaram a indústria na Austrália. A principal delas, contra o ator vencedor do Oscar Geoffrey Rush — primeiro pela atriz Eryn Jean Norvill, que o acusou de deliberadamente acariciar seu seio durante a produção da peça "Rei Lear" há três anos, e depois pela estrela da série "Orange is the new black" Yael Stone.

No entanto, o movimento #MeToo demorou a ganhar força por lá, em grande parte porque as leis de difamação do país favorecem fortemente o acusado.

Código de conduta

Ita O'Brien opina que a indústria global de entretenimento deveria ter um código de conduta para que os artistas possam atuar no local de trabalho “sem medo” — uma necessidade ilustrada por vários casos que ganharam as manchetes nos últimos anos.

O filme “Azul é a cor mais quente”, de 2013, foi aplaudido pela representação crua e gráfica do sexo lésbico. Mas uma de suas estrelas, a atriz francesa Léa Seydoux, descreveu mais tarde as filmagens como “humilhantes” e disse que a fizeram se sentir “como uma prostituta”.

Três anos depois, com o #MeToo gerando uma série de reconsiderações sobre condutas previamente aceitas, a infame cena de estupro anal no filme “O último tango em Paris” (1972) passou a ser vista como uma forma de abuso sexual. A famosa cena da manteiga foi filmada sem aviso prévio a atriz Maria Schneider , então com 19 anos. Mais tarde, ela afirmou ter se sentido estuprada na ocasião.

Para evitar quaisquer situações comprometedoras — e ajudar produções a se salvaguardarem contra processos ou acusações de comportamento inadequado —, O'Brien criou uma série de diretrizes de “intimidade no set” para diretores, produtores e atores.

Elas incluem a obrigação de uma terceira pessoa estar presente nos ensaios, acordos com antecedência sobre áreas de toques físicos e níveis de nudez, o uso de tapa-sexo e bolsas para garantir que os genitais nus nunca se toquem, e o uso de termos adequados para partes do corpo e atividades sexuais nos roteiros.

As diretrizes determinam ainda que cenas íntimas, tanto aquelas envolvendo ato sexual completo quanto as que têm menor contato físico, devem ser coreografadas, e que os atores devem verbalmente consentir em todo contato físico feito durante os ensaios.

Hollywood segue a mesma linha: em outubro, a HBO anunciou que todas as suas produções com cenas de sexo passariam a contar com um coordenador de intimidade presente , e ONGs americanas como a Intimacy Directors International, fundada em 2016, estão ganhando força.

'Imagine cenas de luta improvisadas'

O'Brien foi inspirada a viajar para a Austrália após ser contactada pela Safe Theatres Australia, uma organização fundada por Eryn Jean Norvill e pela atriz e ativista Sophie Ross. Em 2017, elas entregaram um dossiê para as maiores companhias de teatro da Austrália com 58 depoimentos anônimos descrevendo casos de assédio sexual, bullying e discriminação.

Shelley Casey, uma atriz de 31 anos que participou da oficina de O'Brien em Sydney em novembro, descreveu a atmosfera na cena cultural australiana como “apenas aceite. Não cause confusão”.

Atores Erica Lovell e Ross Walker durante a oficina de Ita O'Brien, em Sydney, Austrália Foto: DEAN SEWELL / NYT
Atores Erica Lovell e Ross Walker durante a oficina de Ita O'Brien, em Sydney, Austrália Foto: DEAN SEWELL / NYT

Ao lembrar de ensaios em que precisou passar por interações íntimas enquanto outros membros da produção cantavam e gritavam, a atriz comparou a ideia de improvisar cenas de sexo a uma cena em que cenas de luta também eram improvisados, o que obviamente causava acidentes.

— Imagina a época em que eles botavam uma espada na sua mão e diziam “improvise nesse cena de luta” — disse ela, reforçando que as orientações das diretrizes de “intimidade no set” dão “a todos regras, limites, linguagem, comunicação”.

Muitos atores acham que não têm escolha a não ser acompanhar as intruções de um diretor, particularmente em uma indústria repleta de desequilíbrio de poder e culto às celebridades.

O'Brien afirma ter ouvido muitas histórias aterrorizantes: atrizes que inesperadamente foram instruídas a tirar a roupa no set, e cenas de sexo saindo do controle enquanto a câmera está rodando, deixando uma das partes envolvidas se sentindo aproveitada.

Para devolver o poder aos artistas, seus workshops focam no consentimento.

Consentimento

Em Sydney, os atores se reuniram com um diretor para criar uma cena íntima, declarando em voz alta onde estavam confortáveis em serem tocados, e onde não estavam. A chave era perguntar, ao abrir um cinto ou acariciar a coxa de uma pessoa, "isso é OK?".

— Isso significa apenas que não há suposições sendo feitas — diz a coordenadora. — E você tem aquele momento de concordância e consentimento, fazendo todos se sentirem bem.

Como equipe, os grupos definiram cada passo da cena para que nada fosse uma surpresa.

Ano passado, O'Brien trabalhou no set britânico da comédia "Sex education", disponível na Netflix, estrelada por uma adolescente virgem. Ben Taylor, diretor da série, afirmou que “essa quebra inicial de tabus” foi valiosa, assim como a discussão aberta sobre cenas de sexo.

— Nossas filmagens foram muito melhores por termos conhecido Ita — afirmou Taylor. — Acho que ela está prestes a se tornar muito ocupada. É curioso, mas a parte mais revolucionária não foi a filmagem em si, mas a conversa antes. Acalmando os nervos e transformando isso num assunto relevante.

Uma antiga crítica ao ensaio exagerado de cenas de sexo é a perda da “química”. Bernardo Bertolucci, diretor de “O último tango em Paris”, chegou a defender a cena do filme argumentando que precisava que Schneider “sentisse, não atuasse, a raiva e a humilhação.”

O’Brien argumenta que suas diretrizes ajudam a criar química entre os atores, não a impedi-la. O programa pretende “dar segurança aos atores, para que eles se sintam livres.”

Atrizes Shelley Casey e Sara Wiseman em uma cena coreografada de beijo, durante uma das oficinas de Ita O'Brien Foto: DEAN SEWELL / NYT
Atrizes Shelley Casey e Sara Wiseman em uma cena coreografada de beijo, durante uma das oficinas de Ita O'Brien Foto: DEAN SEWELL / NYT

Sara Wiseman, uma atriz australiana que participou de uma oficina com O’Brien em Sydney, concorda.

— Nós precisamos ficar vulneráveis, algumas vezes precisamos ser violentos, ter intimidade, então todo apoio é importante — diz a atriz neozelandesa. Minutos antes, ela representava uma cena de beijo com uma colega. — Assim é possível deixar explodir a critividade, pois você conhece os parâmetros.