Em julho de 2018, o diretor James Gunn foi demitido pela Disney de “Guardiões da galáxia vol. 3” após a descoberta de tuítes de mais de dez anos com piadas preconceituosas. Posteriormente, acabou recontratado após pressão do elenco e dos fãs. Meses depois, o anúncio de Kevin Hart como apresentador do Oscar 2019 foi seguido por protestos diante de piadas consideradas homofóbicas que ele havia feito entre 2009 e 2011. O comediante acabou desistindo do trabalho e a cerimônia aconteceu sem apresentadores. Antes disso, na França, em 2017, Mehdi Meklat, estrela em ascensão do jornalismo e símbolo de uma juventude progressista, viu sua carreira ruir com a descoberta de que tinha uma conta de um personagem no Twitter repleta de conteúdo preconceituoso.
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O debate sobre a cultura do cancelamento despertou então o interesse do diretor francês Laurent Cantet, de 61 anos, conhecido pelo trabalho em “Entre os muros da escola” (2008), filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes. E assim nasceu “@Arthur Rambo — Ódio nas redes”, livremente inspirado na história de Meklat.
Na trama, Karim D. (Rabah Nait Oufella) é um escritor que colhe os frutos do sucesso,cobiçado por programas de TV, editoras e produtores querendo adaptar seu livro para os cinemas. Determinado dia, Karim é confrontado com a descoberta de que mantinha uma conta fake no Twitter sob o pseudônimo Arthur Rambo, que no passado havia publicado mensagens antissemitas, racistas e homofóbicas. Sem a real dimensão do problema, Karim destaca que a conta era um personagem, um exercício provocador, uma tentativa de conquistar engajamento.
— Quis falar sobre o espaço que as mídias sociais podem ocupar em nossa vida. Nós usamos muito, mas não pensamos realmente na maneira como as usamos — destaca Cantet em entrevista via Zoom. — Acho que o que mais me assusta é a forma como as redes simplificam nossa maneira de pensar. Você tem que ser o primeiro a reagir, tem que ser aquele que encontrará a boa piada, deve ser o mais provocador se quiser ser apreciado. Isso construiu uma forma de pensar que me assusta mais do que a própria violência presente nas redes.
Cantet opta por não julgar seu protagonista. Em vez disso, o coloca em diversas situações em que é confrontado sobre suas atitudes, nas quais, ainda que relutantemente, pode sentir melhor o impacto de suas palavras. O cineasta não defende as atitudes de Karim, mas põe em questão se é justo cancelar pessoas por atos realizados anos antes.
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— É terrível ser responsável por coisas que você escreveu quando tinha 15 anos e simplesmente não era maduro o suficiente. Se alguém me mostrasse todas as coisas que eu poderia ter dito aos 15 anos, acho que teria muita vergonha — argumenta. — A internet não esquece. Se você faz uma piada de mau gosto, mesmo se decidir apagar depois, alguém vai encontrar.
Fã do cinema novo
Apesar de não ser um entusiasta de redes sociais, Cantet passou bastante tempo no Twitter para realizar o filme. O cineasta é conhecido por obras que relatam o comportamento da juventude francesa, especialmente a formada por imigrantes.
Fã do Cinema Novo, Laurent Cantet, que já visitou o Brasil inúmeras vezes, diz que precisaria passar ainda mais tempo no país para se sentir capaz de fazer um filme aqui. Ainda assim, reconhece no país várias histórias que poderiam ser levadas para a tela grande. Familiarizado com o subúrbio francês e uma população muitas vezes excluída das áreas mais nobres, o cineasta é particularmente fascinado pela realidade brasileira com “extremos coexistindo lado a lado”, com espaços em que a desigualdade social está escancarada diante de todos.