Em uma de suas primeiras falas, o detetive coreano que investiga o possível tráfico de bebês na cidade de Busan no filme “Broker — Uma nova chance”, com estreia nesta quinta-feira (6) nos cinemas brasileiros, deixa escapar sua reprovação à atitude de mães que entregam seus recém-nascidos à adoção. “Ela não deveria ter dado à luz se pretendia desistir da criança e abandoná-la”, dispara o policial no novo filme de Hirokazu Kore-eda, que explora o fenômeno da “baby box”, dispositivo criado por igrejas e hospitais onde pais podem deixar, sob a proteção do anonimato, os bebês que não podem ou não querem criar. Na visão do cineasta japonês, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes com “Assunto de família” (2018), o homem da lei representa a voz do povo sobre um tema tão delicado.
— Muitas pessoas têm ideias preconcebidas sobre mulheres que desistem de seus filhos. As tais “caixas de bebês” também existem no Japão, embora em número menor. Mas a opinião pública, tanto na Coreia quanto no meu país, ainda não decidiu se a iniciativa é uma coisa boa ou ruim. Eu acredito que este é um tema muito controverso e que merece uma reflexão cuidadosa, qualquer que seja o caso — disse Kore-eda durante o Festival de Cannes 2022, do qual “Broker”, uma produção coreana, saiu com prêmio do júri ecumênico e a Palma de melhor ator (Song Kang-ho, que interpreta o pai da família pobre de “Parasita”, de Bong Joon Ho). — Nesse contexto, as mães são as mais fáceis de criticar, por causa da ausência do pai, que escapa ao julgamento da sociedade.
Cantora de K-pop
A trama tem início com a jovem mãe So-young (Lee Ji-eun, também conhecida com IU, cantora do K-pop coreano) deixando, meio hesitante, uma criança na “caixa de bebês” de uma igreja local. Logo em seguida surge Sang-hyun (Song Kang-ho), microempresário endividado que convence o amigo Dong-soo (Gang Dong-won), voluntário da paróquia, a apagar as imagens da câmera de segurança e levar o bebê para vendê-lo no mercado de adoção ilegal, para “os melhores pais que aparecerem”. Mas, arrependida, So-young retorna no dia seguinte para pegar o bebê de volta, descobre os planos da dupla e decide ajudá-los, evitando que seu filho vá parar em um orfanato. O trio embarca em uma viagem de prospecção de possíveis famílias adotivas rumo a Seul, com os detetives Su-jin (Bae Doona) e Lee (Lee Joo-young) em seu encalço.
Conhecido por sua visão humanista dos grupos familiares não necessariamente ligados por laços sanguíneos, Kore-eda conta que sua curiosidade pelo tema nasceu quando se preparava para filmar “Pais e filhos” (2013), sobre um casal que descobre que seu filho de 6 anos foi trocado por outro na maternidade.
— Estava pesquisando sobre o sistema de adoção japonês e descobri que a pequena Kumamoto era a única cidade do Japão que tinha uma dessas “caixas de bebês”. Eu me interessei pela descoberta e aprofundei mais a minha pesquisa. Aprendi que o tal dispositivo para doação também existia na Coreia, e que lá o número de recém-nascidos deixados para adoção era dez vezes maior do que no Japão — contou o realizador, de 60 anos, que também conheceu crianças de orfanatos ao longo do processo de pesquisa. — Algumas dessas crianças, que se viam como filhos indesejáveis, se questionavam se não teria sido melhor nem ter nascido. As dúvidas levantadas por elas se tornaram o foco de um possível longa-metragem sobre essa situação.
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A ideia ganhou impulso alguns anos mais tarde, quando um grupo de atores coreanos que Kore-eda admirava, entre eles o próprio Song Kang-ho, já uma estrela em seu país por causa de sucessos como “Expresso do amanhã” (2013), manifestou o desejo de trabalhar com o diretor japonês. A escalação do colaborador mais antigo de Bong Joon Ho para o papel central de “Broker” (“corretor” ou “intermediário”, em tradução livre) se encaixava perfeitamente na proposta do japonês, que desejava falar sobre adoção com um certo olhar cômico.
— Quanto mais lido com coisas sérias, mais quero adicionar um toque de humor. E Song Kang-ho era o ator ideal para o personagem do “corretor” de bebês, pois ele tem esses dois lados nele — disse Kore-da. — Adotei esse tipo de abordagem porque acho que ela faz as pessoas prestarem mais atenção ao que quero mostrar. Tivesse eu feito um filme em tom de drama, tragédia, poderia ter resultado em algo menos convincente e atraente. É a história de uma família diferente, que se uniu por escolha. Cada um deles foi rejeitado de alguma forma. O encontro e a viagem que promovem é quase um acidente de percurso. Cada um cometeu algum tipo de crime, e todos eles tentam, pelo menos uma vez na vida, fazer algo de bom, em maior ou menor grau. Acredito no potencial do ser humano. Acho que, no fundo, eles são gentis e bons, e tento enfatizar isso.
É a segunda vez que Kore-eda filma longe do Japão natal, em outra língua — a primeira foi “A verdade” (2019), drama familiar ambientado na França, e estrelado por Catherine Deneuve, Juliette Binoche e Ethan Hawke. Uma produção coreana dirigida por um japonês pode ser uma conquista diplomática na relação entre a Coreia do Sul e o Japão, que não se recuperaram totalmente do trauma das incursões territoriais dos japoneses na Península Coreana entre 1910 e 1945.
Sem respostas definitivas
As possíveis diferenças linguísticas e culturais entre os dois países desaparecem sob um drama comum às duas nações: os estigmas do abandono e da adoção ligados ao sistema da “caixa de bebês”.
— As pessoas desenvolvem pontos de vista precipitados sobre a caixa de bebês. Mas eu também não queria dar uma resposta definitiva de forma alguma — disse Kore-eda. — No Japão, a maior crítica sobre a prática da doação anônima pelo sistema das caixas é que isso facilitava e estimulava que mães abrissem mão da responsabilidade de criar o filho. Por outro lado, algumas pessoas dizem também que essas caixas, na verdade, estavam salvando vidas porque, caso contrário, as crianças poderiam morrer na rua. Apenas pensei que eram argumentos interessantes para construir um filme em torno disso.
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