Apesar da greve dos sindicatos dos atores e dos roteiristas americanos, o Festival de Veneza terá motivos de sobra para comemorar sua 80ª edição, que começa nesta quarta-feira (30), com a exibição de “Comandante”, do italiano Edoardo De Angelis. A sombra lançada sobre a presença do brilho hollywoodiano da programação se dissipou rapidamente com a confirmação de algumas das produções mais esperadas da temporada na competição pelo Leão de Ouro deste ano, como “Maestro”, cinebiografia do maestro Leonard Bernstein, dirigida e protagonizada por Bradley Cooper; “Priscilla”, de Sofia Coppola, sobre a vida da viúva de Elvis Presley; e “Poor things”, ficção científica de Yorgos Lanthimos (de “A favorita”) protagonizada por Emma Stone e Mark Ruffalo.
A paralisação dos artistas americanos assinalava para uma presença menor de estrelas internacionais no tapete vermelho, já que, pelas regras dos sindicatos, seus associados estão impedidos de promover seus trabalhos. Mas a organização da mostra italiana confirmou esta semana que alguns filmes independentes, produzidos fora do âmbito da AMPTP, associação de produtores de filmes e TV americana, conseguiram licenças provisórias dos sindicatos. Com isso, estão garantidas, por exemplo, as participações de Adam Driver, protagonista de “Ferrari”, o drama automobilístico dirigido por Michael Mann; Jessica Chastain, estrela de “Memory”, de Michel Franco; e Cailee Spaeny e Jacob Elordi, que interpretam o casal do filme de Sofia Coppola.
A única grande perda gerada pela greve foi a substituição de “Challengers” — dirigido pelo italiano Luca Guadagnino e protagonizado por Zendaya e Josh O’Connor (“The crown”), originalmente escalado para abertura — pelo filme de De Angelis. O estúdio MGM adiou a estreia do longa-metragem para 2024, temendo o impacto da ausência de suas estrelas na campanha de divulgação do filme. Mas a integridade da programação do Festival de Veneza, que, ao longo dos últimos dez anos consolidou sua reputação de principal plataforma para a temporada de premiação, que culmina com o Oscar, está garantida, segundo Roberto Cicutto, presidente da Bienal de Veneza, a fundação que produz a mostra de cinema, entre outras atividades culturais.
— Garantimos uma seleção muito rica de títulos importantes de diferentes partes do mundo, apesar das turbulências causadas pela paralisação dos artistas americanos e também pelas turbulências meteorológicas que ocasionalmente atingiram Veneza nos últimos anos — disse Cicutto no anúncio do programa. — Temos uma seleção projetada para o futuro, sem medo das mudanças tecnológicas e de linguagem, mas um festival que as atravessa, que sabe viver no meio dos acontecimentos históricos que os distinguem, como sempre fez.
Vencedor do Grande Prêmio do Júri na edição de 2019 com “O oficial e o espião”, o diretor franco-polonês Roman Polanski, de 90 anos, está de volta à programação do festival com a produção fora de competição “The Palace”, comédia ambientada em um hotel suíço na virada no milênio, com nomes como John Cleese, Mickey Rourke e Fanny Ardant. Mas, por causa dos problemas com a Justiça americana por acusações de má conduta sexual, o diretor não virá defender seu filme em Veneza.
— Ele não pode viajar devido ao acordo de extradição entre a Itália e os Estados Unidos. Convidamos Roman há três anos e ele ganhou o Grande Prêmio do Júri. Por que deveríamos ter dúvidas em convidá-lo agora? Nada mudou. O debate não mudou. Estamos presos nesta situação inútil, que não faz sentido. Roman admitiu que estava errado. A vítima o perdoou diversas vezes. Por que continuamos atacando um mestre de 90 anos? — indagou Alberto Barbera, diretor artístico da mostra italiana.
Luc Besson — que entrou na mira dos haters em 2018, quando foi acusado de importunação e estupro, motivo de processo que caiu por insuficiência de provas — estará presente em Veneza e compete com “Dogman”, drama sobre um homem traumatizado que encontra conforto entre os cães.
Outro que passou por cancelamento e estará no festival é Woody Allen, de 87 anos, que virá exibir o drama de suspense “Coup de chance”, sua primeira produção francesa, também fora de competição.
— Allen foi inocentado ainda nos anos 1990. Besson foi inocentado recentemente por um tribunal francês — ponderou Alberto Barbera — E devemos aprender a distinguir entre o comportamento do artista e a própria arte. Caso contrário, teríamos que reconsiderar a arte dos séculos passados.
O Festival de Veneza estará muito bem acompanhado em seu aniversário redondo. A lista de candidatos aos Leões ainda inclui Ava DuVernay (“Origin”), David Fincher (“The killer”), Matteo Garrone (“Io capitano”), Pablo Larraín (“El conde”), e Ryûsuke Hamaguchi (“Evil does not exist”), vencedor dos Oscars de melhor filme internacional, roteiro e direção com “Drive my car” (2021).
Presença brasileira
O cinema brasileiro participa da mostra paralela Horizontes com “Sem coração”, codirigido por Nara Normande e Tião, drama ambientado em uma vila pesqueira nos anos 1990, e da competição da mostra de realidade virtual com o curta “Finalmente eu”, de Marcio Sal. O diretor americano Damien Chazelle, de “La la land —Cantando estações”, preside o júri do festival, que vai até dia 9.