Fazia menos de uma década que as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki haviam sido alvos de bombas atômicas americanas, quando, em 1954, o diretor Ishiro Honda e o produtor Tomoyuki Tanaka transpuseram para as telas do cinema as angústias daquele trauma nacional. “E se um dinossauro adormecido fosse despertado pela bomba e transformado num gigante? E se atacasse Tóquio?”, explicou, na época, Tanaka.
Daí surgiu “Gojira”, no Ocidente conhecido como “Godzilla”, que há 70 anos ostenta o título informal de “rei dos monstros” do cinema, seja no Japão ou em Hollywood. A criatura nunca dorme profundamente — apenas tira leves cochilos — e, de tempos em tempos, levanta com a corda toda. Como agora, ao ser inspiração para série da Apple TV+ (“Monarch: legado de monstros”, que estreou em novembro e gira em torno da organização que estuda criaturas como Godzilla) e personagem principal do longa japonês “Godzilla minus one” (nos cinemas desde quinta-feira, revisitando o surgimento da criatura no pós-guerra). Ainda está programada a aparição dele na superprodução de Hollywood “Godzilla e Kong: o novo império”, marcada para chegar ao público no dia 12 de abril de 2024.
—Muitas pessoas consideram o fascínio pelo Godzilla como um simples apreço por filmes de monstros se batendo — diz o estudante de Caxias do Sul (RS) Pedro Henrique Palhano, de 21 anos, administrador das páginas Godzilla Brasil no Facebook e Instagram, que somam 50 mil fãs. — Mas ele é um personagem versátil. Os japoneses não fizeram só um filme de monstro, eles deram forma ao horrores da guerra, criaram uma boa representação dos efeitos da intervenção humana na natureza.
Desde o primeiro filme, já são quase 40 adaptações para o cinema — cinco delas feitas por Hollywood. Originalmente um produto da radioatividade, como uma metáfora dos efeitos devastadores e incalculáveis dessa energia, o monstro foi ganhando, com o tempo, outras interpretações. Por isso, acredita o crítico e pesquisador de cinema Carlos Primati, ele persiste como personagem tão rentável.
—Ao longo dos anos, Godzilla vai se transformando, fica mais engraçado, até infantil — diz Carlos. — Chega a lidar com ecologia, enfrenta um monstro da poluição. Há filmes mais psicodélicos, quase relacionados à contracultura. Num outro, ele tem um filho, e você vê lições de paternidade. É uma ferramenta útil para várias situações.
Diretor de “Godzilla minus one”, Takashi Yamazaki, um dos maiores nomes do Japão em efeitos especiais, tem a mesma opinião de Carlos sobre a potência narrativa de "Godzilla":
— O personagem persiste na História porque simboliza as dificuldades, medos e ansiedades de seus respectivos tempos. Ele não é a mesma coisa o tempo todo. É um símbolo de mudança contínua, portanto, pode existir em qualquer época.
Em "Minus one", no entanto, a história volta ao cenário do pós-Segunda Guerra. O longa se passa logo depois do conflito e é protagonizado por um kamizake que desistiu de se sacrificar pelo país e pousou numa ilha, onde o Godzilla aparece pela primeira vez e mata todo mundo. Atormentado, ele volta para Tóquio, onde reencontra o monstengo e tem a chance de acertar as contas com o passado.
— Esse filme funciona como um resgate de 1954 — explica Janete Oliveira, professora adjunta do setor de japonês da Faculdade de Letras da Uerj e autora da newsletter ELO Nihon, sobre cultura japonesa. — E marca também o início das comemorações dos 70 anos.
A estratégia deu certo não só no Japão, como também fora dele. “Minus one”, que estrou nos EUA em 1º de dezembro, já é o filme japonês mais rentável da história do mercado americano. Ele já arrecadou US$ 57,3 milhões no mundo e concorre ao prêmio de melhor filme estrangeiro no Critics Choice Awards de 2024. É também pré-candidato ao Oscar de melhor efeitos visuais — com um orçamento de US$ 15 milhões; para comparar, o hollywoodiano “Godzilla x Kong” (2021), gastou US$ 155 milhões e não teve a mesma atenção.
Além da discrepância orçamentária, Janete Oliveira destaca a diferença de abordagem entre japoneses e americanos:
—No Ocidente, a nossa ideia é que ele é o mal que vem destruir uma coisa boa. No Oriente, explora-se a ideia de quebra do equilíbrio entre Humanidade e natureza. No caso do Godzilla, isso foi rompido com os testes nucleares.