RIO — A cerimônia da 88ª edição do Oscar começa neste domingo, às 22h, cercada de perguntas e expectativas — como há muito tempo não se via. Ao contrário dos anos anteriores, não há favorito na categoria de melhor filme. Mas
Leonardo DiCaprio
nunca teve tantas chances de enfim sair da festa com a estatueta de melhor ator (após quatro indicações anteriores). Para nós, brasileiros,
a animação “O menino e o mundo”, do paulistano Alê Abreu, concorre com pesos-pesados do setor
ao que pode ser o primeiro troféu do país. Mas, 45 dias após o anúncio dos indicados, a maioria dos olhos estará voltada para um homem que sequer disputa estatuetas.
O comediante Chris Rock, mestre de cerimônia deste ano, terá que falar sobre o elefante na sala
: a falta de diversidade racial entre os indicados (pelo segundo ano seguido, não há atores negros na disputa), questão que se tornou uma das maiores polêmicas da história da premiação. Por ser negro, Rock é considerado a pessoa ideal para abordar o tema — sintetizado nas redes sociais com a expressão #OscarsSoWhite (#OscarMuitoBranco). O que Rock irá dizer em seu monólogo é a grande dúvida. Mas uma coisa é dada como certa: o público presente, composto em sua maioria por convidados brancos, deve passar por momentos de desconforto. “Ele vai acabar com a gente”, apostou o produtor Harvey Weinstein, em entrevista à revista “Hollywood Reporter.”
— O Chris Rock faz parte de uma linhagem de comediantes que não recusam temas difíceis, como George Carlin, Richard Pryor e tantos outros que abriram a cabeça de americanos acostumados a fugir de certos assuntos — diz o ator e humorista Gregorio Duvivier. — Ele persegue os tabus. Isso acontece porque o riso se alimenta do proibido, de tudo aquilo sobre o que não se pode falar. Acho possível até que Rock apareça com o rosto pintado de branco, tipo um
white face
, dizendo que a Academia o obrigou a se pintar assim. Uma piada só existe se houver o risco de ela não ser compreendida. A graça é proporcional ao risco que o comediante corre. E este é um Oscar especialmente político por estar em ano de uma eleição tão polarizada entre radicais.
ACADEMIA MUDOU AS REGRAS
Não é a primeira vez que questões políticas pautam as cerimônias. Tópicos sensíveis, como direitos civis, guerras e sexismo, sempre estiveram presentes nos discursos e monólogos. O próprio Chris Rock, quando apresentou o evento há 11 anos, alfinetou o então presidente americano George W. Bush e o conflito no Iraque. Mas as críticas normalmente surgem de forma espontânea, já que arte e política costumam ser indissociáveis. Este ano, porém, a polêmica atinge diretamente a premiação e
provoca mudanças concretas nas políticas da Academia
, que virou até alvo de boicotes por artistas negros.
Em janeiro, em resposta à controvérsia, a presidente da instituição, Cheryl Boone Isaacs (que, a propósito, é negra), sugeriu a criação de um sistema de cotas e afirmou que reveria os critérios de convite a novos membros, em nome de uma organização mais inclusiva em “gênero, raça, etnia e orientação sexual”.
Desde que Spike Lee, no fim de janeiro, afirmou que
não iria à cerimônia do Oscar
por falta de atores negros entre os indicados, alguns dos artistas mais influentes de Hollywood se manifestaram sobre o asunto. Até a presidente do Oscar apoiou a crítica.
Lupita Nyong’o
Premiada com o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 2014, a atriz se manifestou através do Instagram. "Estou desapontada com a falta de inclusão no Oscar deste ano. Isso me fez pensar sobre preconceito inconsciente e o merecimento em nossa cultura".
Whoopi Goldberg
Também premiada com o troféu de melhor atriz coadjuvante, há 25 anos, Whoopi Goldberg disse que está "irritada" em reclamar da falta de diversidade todo ano. "O problema é que as pessoas que podem financiar os filmes com negros, latinos e mulheres nos papeis principais acham que não há retorno financeiro para esse tipo de produção".
Robert L. Johnson
O fundador da "Black Entertainment Television" fez uma série de sugestões para resolver o problema. Entre elas está "incentivar os estúdios a contratar minorias em seus departamentos criativos e setores de desenvolvimento".
Snoop Dogg
Com os habituais palavrões, o rapper americano se manifestou sobre o assunto. "Por que eu iria assistir à merda do Oscar? Não indicaram nenhum negro. Todos esses grandes filmes (com atores ou diretores negros) e vocês continuam nos roubando. Fodam-se!".
Detentor de duas estatuetas, Clooney se solidarizou com a causa. Se você olhar para dez anos atrás, a Academia estava fazendo um trabalho melhor. Pense quantos negros eram indicados naquela época".
Michael Moore
O diretor de "Fahrenheit 11 de setembro" disse que está feliz em boicotar o Oscar, assim como Spike Lee e Jada Pinkett Smith. "Eu absolutamente apoio a atitude deles. Digo isso como membro da Academia".
Jurados se defendem
Em entrevista ao Hollywood Reporter, três integrantes da Academia se defenderam: Jeremy Larner, Penelope Ann Miller e um que não quis se identificar. "Chamar a nós todos de racistas é extremamente ofensivo. Eu, por exemplo, votei em negros que acabaram não sendo indicados", disse Miller.
Mudanças drásticas
Poucos dias depois da polêmica, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciou mudanças nas regras do Oscar. A atitude visa promover a diversidade de perfis entre os indicados — e, consequentemente, entre os premiados. A medida foi divulgada pela presidente Cheryl Boone Isaacs.
Como se sabe, porém, o problema da diversidade vai além do Oscar e atinge toda a indústria. Neste mês,
um estudo da Universidade do Sul da Califórnia confirmou o que todos já sabiam
: existe uma “epidemia de invisibilidade” em Hollywood, no sentido de que mulheres, gays e minorias em geral estão sub-representados em filmes e séries de TV. A pesquisa comparou o meio a um “clube para homens héteros brancos.”
As propostas anunciadas por Cheryl Boone tiveram recepção mista entre os integrantes da Academia
. Em geral, o sentimento é que elas representam um passo importante em direção a mais diversidade, mas seriam insuficientes para abalar as estruturas segregadoras que sustentam a indústria. O crítico de cinema e comentarista do Oscar Rubens Ewald Filho só vê precedente semelhante na década de 1920. Naquela época, a Academia surgiu não para distribuir estatuetas douradas, mas como uma organização que pudesse mediar disputas trabalhistas sem a participação de sindicatos.
— A ideia era que a Academia representasse os profissionais, mas houve greves e protestos, até que as políticas finalmente mudaram. Este episódio foi importante porque transformou completamente as estruturas. O que ocorre agora é outra grande crise. A diferença é que antes a Academia estava errada e agora ela apenas reflete o problema de um meio que não contrata negros e mulheres — diz Ewald.
O Oscar começou a ser entregue em 1929. A primeira indicação para uma atriz (ou ator) negra veio apenas dez anos depois. Hattie McDaniel ganhou pelo papel de Mammy, em '...e o vento levou'. McDaniel foi muito criticada durante sua carreira por interpretar papéis de domésticas que, segundo movimentos de direitos civis, perpetuavam estereótipos.
Sidney Poitier
Sidney Poitier foi o primeiro afro-americano a ser indicado ao Oscar de melhor ator, em 1958, por 'Acorrentados', e o primeiro a ganhar a estatueta, em 1963, por 'Uma voz nas sombras'. Com o sucesso de outros filmes, ele se tornaria um dos maiores atores de Hollywood e símbolo do movimento negro nos EUA.
Louis Gossett, Jr.
Uma nova vitória viria apenas em 1982, com o prêmio de melhor ator coadjuvante para Louis Gossett, Jr. por seu papel em 'A força do destino'. Entre 1963 e 1982, foram apenas sete indicações de atores negros, entre eles James Earl Jones (1970, ator por 'A grande esperança branca') e Diana Ross (1972, atriz por 'O ocaso de um estrela').
Denzel Washington
'Tempo de glória' (1989) foi o primeiro Oscar de Denzel Washington, como ator coajuvante. Ele já havia sido indicado na mesma categoria dois anos antes por 'Um grito de liberdade' e disputaria o prêmio de ator principal por 'Malcolm X' (1993), 'Hurricane' (2000) e 'O vôo' (2013), vencendo mais um vez por 'Dia de treinamento' (2001).
Cuba Gooding, Jr. e Whoopi Goldberg
Nos anos 1990, apenas dois papéis cômicos em histórias românticas renderam Oscars para atores negros. Cuba Gooding Jr. ganhou pelo jogador de futebol americano Rod Tidwell, em 'Jerry Maguire', e Whoopi Goldberg pela médium de 'Ghost, do outro lado da vida'.
Com a virada do século, Hollywood ensaiou uma mudança. Halle Berry se tornou a primeira (e até hoje única) a ganhar um Oscar como melhor atriz no mesmo ano em que Denzel Washington levou sua segunda estatueta, por 'Dia de treinamento'. Até hoje, esse também foi o único ano em que os dois vencedores dos principais prêmios de atuação foram negros.
Jamie Foxx e Morgan Freeman
Depois da dobradinha entre Halle Berry e Denzel Washington, atores negros só voltariam a ser premiados três anos depois. Dessa vez, Jamie Foxx foi eternizado por viver o músico Ray Charles na cinebiografia 'Ray', de Taylor Hackford. Ainda em 2004, Morgan Freeman venceu como ator coadjuvante por 'Menina de ouro'.
Forest Whitaker e Jennifer Hudson
Assim como 2004, 2006 também foi um bom ano para atores negros na premiação da Academia. Forest Whitaker levou o Oscar de melhor ator por 'O último rei da Escócia', em que interpretava idi Amin, ex-presidente de Uganda. E Jennifer Hudson venceu como atriz coadjuvante no musical 'Dreamgirls'.
Mo'Nique
Entre 2006 e 2008, atrizes como Viola Davis, Ruby Dee eTaraji P. Henson foram indicadas, mas foi apenas no ano seguinte que Mo'Nique acabou sendo consagrada com o Oscar de melhor atriz coadjuvante por sua interpretação poderosa em "Preciosa: Uma história de esperança".
Octavia Spencer e Lupita Nyong'o
Desde 2006, quando Whitaker foi premiado, atores negros só voltaram a receber estatuetas como coadjuvantes. Atrizes, na verdade. Depois de Mo'Nique, Octavia venceria em 2011 por "Histórias cruzadas", enquanto Lupita foi premiada em 2013, por "12 anos de escravidão". Nesse período, outros 13 atores foram indicados.
A atriz, vencedora do Oscar de atriz coadjuvante por "Um limite entre nós" (2016), já foi indicada ao prêmio outras duas vezes por "Dúvida" (2008) e "Histórias cruzadas" (2011).
Mahershala Ali
O ator é dono de duas estatuetas, ambas como melhor coadjuvante. A primeira veio com o filme "Moonlight", de 2016, vencedor também do Oscar de melhor filme. A segunda veio com "Green Book: O Guia", de 2018 (foto).
Regina King
"Se a Rua Beale Falasse", drama de 2018, rendeu a Regina King, em 2019, o Oscar de melhor atriz coadjuvante. No mesmo ano, ela também levou para casa o Globo de Ouro
Polêmicas à parte, uma característica positiva vai marcar esta noite: a categoria principal é uma das mais imprevisíveis. Basta ver o resultado das três premiações que servem de termômetro para o Oscar (por reunirem boa parte dos votantes da Academia).
O Sindicato dos Atores elegeu “Spotlight: Segredos revelados”
, inicialmente tido como favorito.
Os produtores premiaram “A grande aposta”
. E o
Sindicato dos diretores consagrou “O regresso”
, líder em indicações neste ano (12). As previsões das revistas especializadas também divergem. A “Variety” colocou “A grande aposta” à frente na corrida. Já a “Hollywood Reporter”, usando critérios matemáticos — isto é, analisando como cada vitória na temporada de premiações influencia, historicamente, os resultados do Oscar —, aponta “O regresso” como o grande vencedor, à frente de “Spotlight”. Ou seja, é uma incógnita.
BRASIL COM POUCA CHANCE
O analista de premiações Pete Hammond, em sua coluna no site “Deadline”, vai mais longe e levanta a possibilidade de “O quarto de Jack” repetir o feito de “Carruagens de fogo”, responsável por uma das maiores reviravoltas da história do Oscar ao derrotar os favoritos e ganhar a estatueta de melhor filme em 1982.
— O desafio de representar uma animação independente é chamar a atenção (
dos votantes
), sem falar do dinheiro. Competimos com estúdios como Disney e Paramount, que têm, literalmente, milhões de dólares para gastar. Não há dúvida de que “Divertida mente” é bem mais famoso que “O menino e o mundo” — reconhece Dave Jesteadt, vice-presidente da GKIDS, distribuidora do longa brasileiro na América do Norte. — Mas uma indicação ao Oscar já é a melhor forma de fazer com que as pessoas percebam que se trata de um filme importante. Antes da indicação, cerca de 25 salas iriam exibir o filme. Depois, adicionamos mais 100. Para a gente, isso é o mais relevante.
Mesmo assim, como escreveu Pete Hammond em sua coluna, “qualquer coisa pode acontecer neste ano altamente imprevisível.”