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‘Soundtrack’, com Selton Mello e Seu Jorge, explora o conflito entre ciência e arte

Com ator de ‘Game of thrones’ no elenco, filme foi rodado em estúdio em Jacarepaguá
Selton Mello em 'Soundtrack' Foto: Mariana Vianna / Divulgação
Selton Mello em 'Soundtrack' Foto: Mariana Vianna / Divulgação

RIO — A pergunta apareceu de forma aleatória durante uma conversa: e se fosse produzido o primeiro filme brasileiro inteiramente situado na neve? A dupla de cineastas Bernardo Dutra e Manitou Felipe, que respondem pelo nome 300ml, levou a sério a proposta que fizeram a si mesmos. Com a ambientação definida, escreveram um roteiro que desenvolvia os temas que queriam explorar: o conflito entre arte e ciência e o valor da amizade.

O resultado, o filme “Soundtrack”, em cartaz a partir desta quinta-feira, é uma meditação sobre o relacionamento entre seres humanos em condições de extremo isolamento, com um elenco brasileiro, representado por Selton Mello e Seu Jorge, e internacional, liderado pelo britânico Ralph Ineson (o Dagmer Cleftjaw, da série “Game of thrones”).

Na trama, Cris (Selton) é um fotógrafo que vai até uma estação de pesquisa polar para desenvolver um projeto artístico, consistido em autorretratos feitos na imensidão branca. Ao tirar cada selfie, Cris usa um fone, ouvindo uma música que traduz seu estado emocional em momentos específicos (daí o título, “Soundtrack”). Lá, Cris conhece o botânico brasileiro Cao (Seu Jorge), que estuda a flora em condições adversas, e o pesquisador britânico Mark (Ralph Ineson), especializado em aquecimento global, além de outros cientistas.

O primeiro conflito surge quando o britânico debocha das pretensões artísticas de Cris. Afinal, qual é a importância da arte em comparação a estudos científicos que poderão ajudar a compreender, no futuro, as transformações climáticas? No entanto, forçados a conviver, os personagens acabam, aos poucos, fortalecendo os laços de amizade — e aprendendo a respeitar o trabalho um do outro. Para os diretores, essa reviravolta é fruto do entendimento, por parte de ambos os personagens, de que eles não são tão diferentes. Afinal, os dois buscam a excelência em seus campos.

— A arte é relevante, todo mundo guarda em sua personalidade um pedacinho dela — afirma 300ml (Dutra e Felipe respondem apenas em conjunto, sob o nome do selo), conhecido por “O código Tarantino” (2006), curta-metragem que viralizou no YouTube ao trazer dois amigos, vividos por Selton e Seu Jorge, discutindo a teoria de que os filmes de Quentin Tarantino se passam num mesmo universo. — A arte às vezes é relegada a segundo plano, o que é errado. Ela causa impacto, faz a sociedade amadurecer.

Por contar com um elenco majoritariamente estrangeiro, “Soundtrack” é praticamente todo falado em inglês. O rosto mais conhecido é o de Ralph Ineson — além de “Game of thrones”, ele interpretou o professor das trevas Amycus Carrow, da franquia “Harry Potter”, e o patriarca da família assombrada por uma maldição no terror “A bruxa” (2015), de Robert Eggers. Ineson diz ter descoberto o projeto por meio de seu agente, e logo ficou interessado na “natureza internacional do roteiro”. A chance de rodar o longa no Rio, uma “grande cidade”, também pesou a favor, ele conta:

— É diferente de tudo com o que me envolvi antes. Não é uma história que segue uma fórmula, não é um filme de ação. É cerebral, inteligente.

Ele se refere à natureza intimista do filme, que valoriza a dinâmica entre os personagens. Mesmo ambientado num deserto de neve, “Soundtrack” foi rodado, em sua maior parte, dentro de contêineres, onde os cientistas (e o fotógrafo) se abrigam. Originalmente, o longa seria filmado fora do país, e os diretores chegaram a fazer uma viagem de pesquisa para a Islândia e a Antártica, entre 2015 e 2016. A alta do dólar, porém, encareceu os custos de produção. Resultado: as filmagens, de 18 dias, foram parar em um estúdio em Jacarepaguá. Para as tomadas externas, foram utilizadas três toneladas de neve cenográfica.

— Houve desafios práticos. Quando os personagens tinham que caminhar por uma longa distância, andávamos pelo estúdio, que não era tão grande — lembra Ineson, acostumado a trabalhar em locações abertas. — Nos primeiros dias, foi estranho atuar com marcações, envolto por telas azuis. Não sabia se ia conseguir me sentir naquele mundo. Mas me acostumei rapidamente.

“Soundtrack” entra em cartaz pouco menos de um mês antes da estreia de “O filme da minha vida”, estrelado e dirigido por Selton Mello. É seu primeiro longa desde “O palhaço” (2011), selecionado para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de filme estrangeiro, e “Feliz Natal” (2008), a sua estreia na direção de longas. Ele bateu ponto também na televisão, no comando da série “Sessão de terapia”, cujas três temporadas foram exibidas no GNT.

— Sempre fui um ator autor. Questionava o porquê de uma fala, da trilha sonora — observa Selton. — A certa altura, fui fazer os meus próprios filmes. O engraçado é que agora eu comecei a ficar com mais dedos de falar qualquer coisa. Porque é aquela história: “Ah, agora o cara é diretor e quer perguntar”. De certa maneira, é o contrário. Estou ali para fazer o meu papel, sei que a linguagem é do diretor. Nesse filme, foi assim.

Enquanto ator, Selton teve duas experiências em filmes em que o inglês já era um idioma presente: “Trash: a esperança vem do lixo” (2014), de Stephen Daldry e Christian Duurvoort, e “Meu amigo hindu” (2015), de Hector Babenco. Mas “Soundtrack” foi o caso mais “instigante”, segundo ele:

— Carregar um filme em outra língua é algo que eu nunca tinha feito. E ainda por cima passado todo na neve. Fui obrigado a usar a minha imaginação, que é a base do meu trabalho.

MOSTRA DE OSKAR METSAVAHT EXPANDE O FILME

“Soundtrack” inspirou um trabalho também fora das telas: uma exposição homônima criada pelo estilista, agora artista, Oskar Metsavaht, em cartaz até 16 de julho no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, composta por nove retratos de Selton Mello, protagonista do longa-metragem, feitos pelo artista no set de filmagem.

As músicas que Cris escuta durante a produção de seus autorretratos nunca são ouvidas pelo espectador (ouça algumas nos vídeos acima), assim como nem todas as suas fotografias são reveladas ao público. É aí que entra o papel da mostra criada por Metsavaht de expandir o universo do filme. Na exposição, o visitante pode usar um fone de ouvido e descobrir qual era a trilha sonora que tocava para Selton Mello durante as filmagens, como “Border”, do Emptyset, e “Then the quiet explosion”, do Hammock, ambas instrumentais. A seleção foi feita por 300ml.

Imagem de Selton Mello, por Oskar Metsavaht: uma interpretação inspirada no filme 'Soundtrack', de 300ml Foto: Divulgação
Imagem de Selton Mello, por Oskar Metsavaht: uma interpretação inspirada no filme 'Soundtrack', de 300ml Foto: Divulgação

Metsavaht precisou colocar-se na pele do personagem, interpretar as suas emoções e dirigir o ator no ensaio fotográfico.

— A pergunta interessante é: quem é o artista? O Cris criado pelos diretores? O Selton, que o interpreta? Ou o meu olhar? — reflete Metsavaht, que agora consolida ainda mais a sua entrada nas artes, iniciada em 2014, com uma performance no Instituto Inhotim, passando pela sua primeira individual, no Rio, em 2016. — Nunca trabalhei com dramaturgia, mas, de certa forma, eu tinha que me colocar na pele do personagem. Não é um autorretrato meu, mas, ao mesmo tempo, é. Às vezes, ficávamos Selton e eu no meio da neve, isolados. Foi um processo bastante íntimo. Em última instância, ele e eu criamos o personagem.

A fotografia não é exatamente uma novidade para Metsavaht, já que em sua exposição no Rio, “Cristo Redentor — Divina geometria”, ele distribuía, por três andares do Museu Histórico, uma visão original sobre o monumento, mesclando objetos e documentos históricos a um trabalho autoral em vídeo, pintura, instalação e, por fim, fotos.

O convite para o trabalho em “Soundtrack” surgiu dos próprios diretores, que viram em Metsavaht a oportunidade de interpretar o artista visual da ficção. Como o estilista gostou do roteiro, não foi difícil aceitar a proposta.

Colaborou Alessandro Giannini, de São Paulo