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'Um filme não é político só pela temática’, diz Grace Passô, atriz premiada no teatro e, agora, cinema

Mineira, que protagoniza 'Temporada' e 'Praça Paris', busca histórias que vençam estereótipos
Grace Passô Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Grace Passô Foto: Leo Martins / Agência O Globo

RIO - O cinema brasileiro tem uma nova estrela. Cria do teatro, a dramaturga e atriz mineira Grace Passô já venceu os principais prêmios das artes cênicas: Shell, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Cesgranrio, só para citar alguns. No ano passado, estreou como protagonista de cinema em “Praça Paris” (2017), de Lúcia Murat , que lhe rendeu outro troféu, o de melhor atriz no Festival do Rio. Neste ano, o feito se repetiu no Festival de Brasília , com “Temporada” (2018), de André Novais Oliveira, diretor que, entre 21 e 28 de novembro, ganha retrospectiva na 10ª Semana de Cinema, novo nome da antiga Semana dos Realizadores.

Com estreia prevista para 17 de janeiro, “Temporada” acompanha Juliana (Grace), que se muda para a cidade de Contagem, Minas Gerais, para trabalhar como agente de combate à dengue e outras endemias. Retraída e ainda se recuperando de um trauma, a protagonista descobre um novo olhar sobre a vida a partir de relações afetivas com colegas e moradores que conhece graças ao trabalho.

Na entrevista a seguir, a atriz, de 38 anos, conta como começou a fazer cinema e defende a sua busca por histórias que vençam estereótipos.

Grace Passô em cena de 'Temporada', de André Novais Oliveira Foto: Thiago Macêdo Correia / Divulgação
Grace Passô em cena de 'Temporada', de André Novais Oliveira Foto: Thiago Macêdo Correia / Divulgação

Seu primeiro grande papel no cinema aconteceu só recentemente. Por quê?

Porque meu amigo e diretor Ricardo Alves Jr. me chamou para fazer uma participação em “Elon não acredita na morte” (2016), e gostei da experiência. Quando nossos desejos se tornam mais claros, passamos a traçar nosso caminho pelo mundo. Atuo há 22 anos e percebi que tudo é atuação, só que com naturezas distintas.

Qual seu prognóstico para o futuro do cinema brasileiro?

Já estamos vivendo um sucateamento da arte brasileira e uma demonização do trabalho artístico. Há um grande descaso do Estado com o meio. O que vimos nas eleições foi uma série de discursos que não só negaram, como também se silenciaram em relação à importância da arte numa sociedade. Isso é resultado de uma visão conservadora. Em hipótese alguma essa imposição pode estar em consonância com uma produção artística próspera, porque arte é um mergulho reflexivo na normatividade, no comum e na realidade. Não é uma ficção suspensa, nem superficial. É ação. A perspectiva retrógrada do conservadorismo demoniza o corpo, não aceita opiniões diferentes e não entende o que é alteridade, um princípio da arte. Estou com medo e não é do futuro, é do presente que se anuncia. Estou num dos piores momentos políticos de toda a minha existência.

“Praça Paris” fala sobre violência no Rio e é considerado um filme engajado. Já “Temporada” foca em relações humanas. Mesmo assim, você também considera político esse trabalho. Por quê?

Porque um filme não é político apenas por causa das temáticas abordadas. Tem a ver, também, com olhares e linguagens. Em nenhum momento “Temporada” fala diretamente de questões políticas, mas o filme em si é uma resposta à nossa realidade e ao cinema brasileiro. Trata-se de um olhar de quem está dentro do território ( André Novais Oliveira nasceu em Contagem ). É uma visão poética elaborada por quem conhece aquela realidade, em oposição a uma pessoa folclorizando um espaço. E isso é uma atitude política, às vezes até mais radical do que outras. Sobretudo quando pensamos que o cinema brasileiro é tão elitizado. As narrativas, em sua maioria, vêm do mesmo lugar, são hegemônicas e colonizadoras. É o outro que fala da periferia, e é por isso que há tanta folclorização dos corpos negros ou de quem está à margem. O fato de “Temporada” ter uma poética inscrita e realizada por quem é de lá é, por si só, política pura e arte em sua essência. É uma resposta artística ao modo de enxergar a periferia. Me interessa ler personagens que consigam vencer estereótipos.

Foi isso o que te levou a fazer o filme?

Meu interesse tem a ver com o título. É um recorte temporal sobre a vida de uma mulher num momento de transformação e transição que não está na ordem do espetacular ou incomum. Ao contrário: são reconhecíveis. Também me interessou a dinâmica do trabalho dos agentes de combate a endemias. Eles entram na casa das pessoas e há uma disrupção da formalidade. Entram na intimidade alheia. É a mesma lógica de pesquisadores e empregadas domésticas. As relações para além da formalidade profissional me interessam.