Convidados da nona mesa da 20ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), os escritores Amara Moira e Ricardo Lísias arrancaram risos e aplausos do público ao falar de não ficção na tarde desta quinta-feira (25). Tanto Moira quando Lísias borram as fronteiras entre ficção e realidade em seus livros, fortemente inspirados em suas experiências pessoais.
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Moira é a primeira travesti a receber o título acadêmico de doutora no Brasil. É autora de “E se eu fosse puta”, no qual aborda sua experiência na prostituição. Lísias escreveu, entre outros romances, “Divórcio”, que causou extremo mal-estar no meio cultural quando foi lançado, em 2013. Ao responder uma pergunta da mediadora Stephanie Borges, ele disse que realmente quer realmente agredir (especialmente, sua própria classe social).
— Odeio minha classe social, meus vizinhos. É difícil lidar com o ódio. A literatura serve para mediar essa situação. Porque eu quero agredir certas pessoas, mas não de uma maneira vulgar, porque isso eles podem enfrentar. Quero agredir com um nível que vá machucá-las de fato. Dependendo de como é manipulada, a linguagem literária oferece essa possibilidade — disse Lísias, que também reclamou de um certo conservadorismo do leitor brasileiro, sempre atrás de “textos edificantes”. — As pessoas leem como vivem, como votam, como tratam seus amigos.
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Lísias, que lança na Flip “Uma dor perfeita”, sobre ido para a UTI com Covid, e a antologia de poemas “A geração que esnobou seus velhos”, explicou que sua opção pela não ficção em a ver com o desejo de intervenção social.
Apaixonada pela literatura desde criança, Moira afirmou encontrou o tema sobre qual gostaria de escrever quando passou fez sua transição de gênero e passou a trabalhar na prostituição. “E se eu fosse puta” nasceu como um blog no qual ela relatava sua rotina travesti.
— Senti a necessidade de usar a literatura para que a sociedade brasileira entendesse o que é esse lugar, que só é considerado indesejável porque não entendem a potência que ele tem. Era isso o que eu queria revelar para o resto da sociedade — disse Moira, que ressaltou ainda a influência da “linguagem das ruas” em sua literatura. — Um dia, uma amiga saiu de um programa e disse: “Passada! Você acredita que ele pediu pra eu nenar na neca dele?”. Quem não entendeu, talvez seja melhor, porque é escabroso! Mas eu achei essa frase poética para caramba! Roubei para escrever um livro que estivesse à altura dela.
Essa frase acabou virando um verso do livro “Neca”, que ganhará uma versão ampliada no ano que vem pela Companhia das Letras. Moira descreveu a nova edição com uma mistura de “Grande sertão: veredas” e “Os 120 dias de Sodoma”.
Já “E se eu fosse puta” está esgotado, mas Moira trouxe, para vender na Flip, alguns exemplares da edição argentina: “Y si yo fuera puta”. Ela disse que traduzir o livro para o espanhol foi duro, pois os hermanos têm um vocabulário sexual bastante limitado.
— Não teve jeito de traduzir “fio terra” para o espanhol. A tradutora pensou que “tchaca-tchaca” fosse a dança “chá-chá-chá” — disse, arrancando mais uma gargalhada da plateia. — Mas no fim conseguimos traduzir "tchaca-tchaca" por “dunga-dunga”.