A primeira mesa da sexta-feira da programação principal da Flip 2023, "Uma prisão mortal", que reuniu a crítica literária Denise Carrascosa, a arquiteta Joice Berth e a ex-deputada federal e jornalista Manuela D’Ávila, foi a mais ovacionada até a tarde do terceiro dia de festa literária. Quando a mediadora, a jornalista Adriana Silva Ferreira, disse que o tempo havia acabado, o auditório lotado irrompeu num "ah" desolado, querendo mais. Restou aplaudir de pé.
Dentre os assuntos abordados pelas três autoras estiveram a construção das cidades a partir de um viés masculino, o encarceramento e a tortura de mulheres negras e o escrutínio da literatura produzida por autoras.
A Joice, autora do livro "Se a cidade fosse minha" (Paz e terra), coube discorrer sobre as estruturas falocêntricas das grandes cidades.
—Falo no livro sobre a arquitetura fálica. A avenida Paulista, em São Paulo, é cheia de espigões que representam o poder econômico, eles são altamente masculino e dão a informação de que o dinheiro importa — disse Joice. — No meio (da avenida), tem o Masp (Museu de Arte de São Paulo), da Lina Bo Bardi. Você olha para o Masp e vê abertura, um vão livre. Essas duas características arquitetônicas nos dão dimensão do lugar de fala.
Autora de "O Pacto de Bocapiu: a cumplicidade silenciosa do feminegricídio de Estado nas prisões" (Ogum’s Toques Negros), a crítica literária e professora Denise Carrascoza contou em detalhes sobre as aulas e iniciativas em literatura que implementa em unidades prisionais na Bahia. Segundo ela, é preciso tirar a aura da literatura como lugar neutro, afinal, é uma arte que pode ser sexista e racista.
— Quando estudei a literatura depois do massacre do Carandiru (chacina que ocorreu na penitenciária paulistana em 1992, com a polícia matando mais de 100 detentos), o mercado editorial fervilhou com histórias do cárcere. Teve Dráuzio Varella. teve filme. Tínhamos histórias e narrativas de homens presos, mas não existia espaço na literatura, no cinema ou no teatro para os corpos das mulheres torturadas — pontuou Denise. — Mas a história da escravidão nos mostra que o corpo da mulher negra sempre foi estuprado. É o corpo da mula, que carrega a droga. Ele é a moeda de troca dentro dos presídios. As mulheres estão sofrendo tortura institucional, através das revistas vexatórias.
Ao ler grandes escritoras negras, como Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz e Ana Maria Gonçalves, por exemplo, mulheres encarceradas não apenas entram para o programa de diminuição de pena (a cada livro resumido, menos quatro dias), diz Denise:
—Para além (do benefício), elas também estão escrevendo sobre si, encontrando esse lugar. A escrita não só representa a vida, ela produz abalos na vida. Não só representa, mas produz.
Ex-deputada federal pelo PC do B e ex-candidata a vice-presidenta da república em 2018 na chapa com Fernando Haddad, que perdeu para Bolsonaro-Mourão, Manuela D'Ávila falou sobre seu ingresso na literatura depois de uma eleição nacional marcada por discursos extremistas e de ódio. Seu primeiro livro, publicado em 2019, era intitulado "Revolução Laura: reflexões sobre maternidade e resistência".
— As pessoas me perguntavam o que eu ia fazer depois de 2018. Decidi que ia contar histórias a partir dos livros. Tentei pegar a visibilidade do espaço publico para que as pessoas prestassem atenção em alguns temas. A maternidade é um tema de opressão. Eu não conhecia. Tratei de politizar minha experiência individual, mostrar que era uma experiência coletiva.
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