Logo que a mesa intitulada “Contra a mentalidade decadente” começou na Flip, a mediadora Maria Carolina Casati avisou: “Essa vai ser uma mediação emocionada”. E foi. À ela foi entregue a responsabilidade de conduzir a conversa entre a nigeriana Akwaeke Emezi e a baiana Carla Akotirene, ambas com trabalhos literários e acadêmicos que visam mudar as estruturas e pensamentos a nós impostos pelo colonialismo.
A cada resposta das convidadas, os aplausos invadiam o Auditório da Matriz. Quando o público foi avisado que a mesa se aproximava do fim, houve sonoros lamentos. Talvez porque as duas tenham dado relatos e opiniões tão teóricas quanto pessoais e tocaram a todos na sala. Maria Carolina abriu o bate-papo perguntando sobre cosmopercepção em contraponto a uma cosmovisão – muito usada pelo branco europeu como uma característica biológica para categorizar as pessoas, transformando esse biológico em social, segundo Carla.
A conversa seguiu Akwaeke explicou que, quando entendeu a existência de múltiplas realidades, conseguiu começar a pensar na ideia de que não existe um centro:
– Quando estudamos colonialismo, aprendemos que língua, religião e cultura foram substituídas, mas, na verdade, a realidade foi substituída. O que gerações e gerações conheciam foi substituído porque europeus disseram que aquilo não era realidade. Quando entendi isso, minha percepção mudou e meu trabalho tentar deslocar as coisas de uma centralidade, existem muitas realidades.
Seguindo no tema de multiplicidades, Carla e Akwaeke discutiram sobre suas percepções de tempo como espirais e não-linearidades. As duas associaram a ideia do tempo às suas ancestralidades e refutaram a ideia de uma linha e ordem cronológica de eventos.
– Quando você olha para uma criança de sete anos que é negra, às vezes, ele já é o homem da casa. Então, nesse caso não existe o tempo de uma criança de sete anos. Tempo é maturidade e compromisso com sua caminhada ancestral – opina Carla.
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Um dos momentos de mais euforia do público foi quando Akwaeke contou a história por trás de seu nome. Ela explicou que seu pai teve um sonho espiritual e decidiu nomeá-la respeitando esse sonho. Mas a família da escritora era católica e quando foi batizá-la, a igreja se recusou pois tal nome era “pagão”.
– O meu livro ("Água doce") veio disso. Entrevistei meus pais para escrever, eu queria usar a linguagem para minha existência fazer sentido. Procurei um caminho por meio da linguagem para alcançar pessoas e buscar um caminho para nomear e expressar realidades às vezes dadas como inexistentes. Queria falar sobre experiências espirituais – explica a nigeriana.
Carla, por sua vez, destaca como a linguagem que foge do ponto de vista colonialista, incomoda. E como é necessário que pessoas negras ocupem a academia:
– A gente passou tanto tempo na cozinha do conhecimento que a gente já aprendeu como envenenar as Academias. Eles dizem “Carla fala difícil. Carla fala de Exu" e eu digo: “e você fala de trompas de falópio”. As nossas prisões estão superlotadas também porque a nossa oralidade não tem o mesmo valor do que o que um policial escreve. Se estamos falando de revolução, a revolução é africana.