Flip
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Por — Paraty (RJ)

Quando reclamam do calor paratiense à poeta canadense Dionne Brand, ela responde:

— Estou acostumada. Eu nasci em Trinidad e Tobago — diz a autora convidada da Flip, referindo-se ao arquipélago caribenho próximo à linha do Equador.

Brand viu as notícias sobre a onda de calor histórica que torrou o Brasil na semana passada. Ela deixou seu país natal há mais de cinco décadas e se estabeleceu no Canadá. Poeta, romancista e ensaísta, Brand integrou a discussão sobre migrações (incluindo o desterro dos africanos escravizados nas Américas) à sua obra, que também trata de temas como raça, gênero e sexualidade. Dois títulos da autora acabam de ser publicados no Brasil pela Bazar do Tempo: a coletânea de ensaios “Pão tirado de pedra” e o livro de poemas “Nenhuma língua é neutra", ambos traduzidos por Lubi Prates e Jade Medeiros.

No início da noite desta quinta-feira (23), ela participava da mesa “As suas nebulosidades”, com a poeta Angélica Freitas, quando Paraty ficou às escuras (o breu durou até por volta das 23h). Horas antes do apagão, Brand recebeu o GLOBO na Pousada Literária para falar sobre a presença da poesia nesta Flip, as armadilhas da linguagem e seu amor por autores latino-americanos e por uma romancista brasileira.

Está é a Flip da poesia. Dos 44 autores convidados, 19 são poetas...

Sinal dos tempos...

Como assim?

Em muitos lugares, a poesia ainda é considerada um gênero menor. A poeta (americana) Adrienne Rich disse que a poesia é a forma de arte menos apta a se tornar mercadoria. Poesia é experiência. Ela permanece importante, talvez até incorruptível, porque nos permite pensar. A poesia nem sempre acerta, é verdade, mas não é essa a régua que devemos usar para julgá-la. Poesia é compromisso com o pensamento profundo. Nestes tempos de ascensão do fascismo, em que somos penetrados pelo capitalismo desde o café da manhã, a poesia nos ajuda a pensar quem nós fomos e o que poderíamos ser fora desse sistema. Por isso, a linguagem dos poetas e sua capacidade de criar sentido tenha se tornado tão desejável hoje.

Você também escreve romances e ensaios. A poesia oferece ferramentas que faltam a outros gêneros?

Não acho que falte algo aos outros gêneros. A questão é que é papel da poesia criar camadas de sentido, renovar continuamente os significados, dar nova forma ao mundo. As outras artes até podem fazer isso, mas esta é a tarefa principal da poesia. Por exemplo: a ficção também pode elaborar muitos significados ao mesmo tempo. Há muitas histórias parecidas ao redor do mundo. Como a ficção pode nos ajudar a ver o novo? O ensaio também pode fazer isso. Por exemplo: veja os textos de Eduardo Galeano (uruguaio, autor de “As veias abertas da América Latina”), que usam todo o material disponível à linguagem.

Vários dos poetas presentes nesta Flip dialogam com diversas linguagens artísticas e também com a História e a política. Como você vê a relação entre poesia e política?

Nunca pensei que a poesia fosse outra coisa senão política. Aimé Césaire (escritor nascido na Martinica) disse: “a justiça escuta às portas da beleza”. A verdadeira beleza leva em consideração todos os meios do empreendimento humano. Nos meus poemas, eu tento desvendar como estamos vivendo e como temos vivido uns com os outros ao logo da História. Integro uma genealogia de poetas que fazem isso: Kamau Brathwaite, Derek Walcott, Adrienne Rich, Pablo Neruda... É uma comunidade enorme de poetas que estão atentos ao ato de viver e a como nos organizamos para vivemos juntos. Não é esta a primeira definição do político?

Você já citou Eduardo Galeano e Pablo Neruda. Você é próxima da tradição literária latino-americana?

Un poquito. Entendo espanhol se leio despacio. Quando comecei a escrever, procurei autores que se relacionavam comigo e se preocupassem com o movimento de migração forçada ao redor do mundo. E foi assim que as Américas foram construídas naquele momento que os europeus chamam de Iluminismo, que é contemporâneo da escravidão. São projetos gêmeos. E daí que eu veio.

E a literatura brasileira, você conhece?

Não conheço tanto como deveria, por isso quis vir ao Brasil. Na América do Norte, somos muito pobres por conhecermos pouca literatura estrangeira. Claro, li alguns clássicos em tradução, como Machado de Assis e Jorge Amado, mas eles são autores de outra era (Machado mais, Amado menos). Mesmo lendo em inglês, consegui perceber que o trabalho deles com a linguagem é muito interessante. Recentemente, me tornei editora de um selo da editora Knopf e vamos publicar “Solitária”, o último romance de Eliana Alves Cruz. Espero encontrá-la aqui na Flip.

É provável que muitos brasileiros conheçam seu trabalho por meio de “Nenhuma língua é neutra”. Esse livro é uma boa introdução à sua obra?

É sim. O título é um verso de Derek Walcott: “nenhuma língua é neutra”. Na minha interpretação, esse verso fala sobre como a língua inglesa dominou o mundo por meio da colonização e como diferentes povos lhe deram uma nova forma de acordo com suas próprias linguagens. A partir desse verso, penso o que essa afirmação quer dizer e como a língua constrói e afeta as vidas das mulheres, moldando suas experiências do mundo e seu entendimento do que é libertação. Neste livro, trabalho a língua como forma e conteúdo, entremeando o inglês coloquial de Trinidad e Tobago ao inglês do colonizador.

Se nenhuma língua é neutra, os poetas de países que foram colonizados e herdaram idiomas europeus devem se manter especialmente atentos, não?

Sim. Este é o trabalho do poeta: desfazer o que a linguagem do colonizador fez, investigando seus termos e como ela posiciona nossos corpos na História, para nomear nossas vivências não na cadência do colonizador, mas na cadência coloquial e cotidiana de quem vive a opressão. Nossa função é transformar a língua quando ela não funciona mais, introduzindo novos termos, novos sentidos. É um trabalho difícil, mas maravilhoso. Nós, poetas, temos um campo enorme para arar. É lindo olhar para trás e contemplar o trabalho já feito.

No posfácio a “Nenhuma língua é neutra”, a poeta Tatiana Nascimento cita um texto seu sobre “essa seriedade, essa intencionalidade perante o mundo”, que “diferencia poetas negras”, que não são “observadoras distanciadas do mundo, mas agentes nesse mundo”. O que esse trecho quer dizer?

Tem a ver o que falamos sobre desconstruir o mundo que nos é dado. Esse é um trabalho constante e produtivo. Penso, por exemplo, no significado do trabalho de poetas como Gwendolyn Brooks e Nikki Giovanni, que são como um sino que soa e não podemos deixar de ouvir. Também penso em como a combinação de racismo e misoginia afeta as mulheres negras. O que uma poeta faz diante dessas lutas? Muda todas as notas, todas a palavras, todos os sons o tempo todo. É um trabalho e tanto. É um bom trabalho, que liberta não só as mulheres negras, mas todo mundo.

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