Ao viajar de São Paulo a Paraty, na semana passada, a escritora americana Christina Sharpe começou a pensar em como era a vida dos escravizados que trabalharam na região do trajeto. Ao conversar com o GLOBO alguns dias depois, ela disse que é impossível descrever Paraty como uma cidade “colonial” e se esquecer que esse adjetivo não se refere apenas à arquitetura do Centro Histórico, mas também à “expulsão de povos indígenas de suas terras e à importação de africanos durante a escravidão”.
Os comentários de Sharpe sobre Paraty estão em completo acordo com o projeto desenvolvido no livro “No vestígio”, no qual ela resgata memórias negras soterradas por uma historiografia predominantemente branca por meio da análise de materiais diversos, como textos jornalísticos, poemas, fotografias, filmes e obras arquitetônicas.
O pensamento interdisciplinar de Sharpe, professora da Universidade de York (Canadá) e de Joanesburgo (África do Sul), levaram o New York Times a descrevê-la como “a mulher que está moldando uma geração de pensamento negro”. A americana, que pretende estreitar os laços com a intelectualidade brasileira, veio ao Brasil participar da Flip (ontem, esteve na mesa “Vocês servirão de lenha para a fogueira transformadora”, com a escritora Leda Maria Martins) e lançar uma versão reduzida do livro “Notas do dia a dia”, que será publicado na íntegra em 2024.
Abaixo, os principais tópicos da conversa dela com o GLOBO.
Os negros e a literatura
“No Ensino Médio, comecei a reparar que obras de autores como Jane Austen, Emily Brontë, F. Scott Fitzgerald e William Faulkner ocultam personagens negras. Eu sabia que havia pessoas negras no texto e queria discutir o que eles faziam ali, mesmo que meus professores achassem que eu estava distraindo meus colegas. A imaginação literária pode nos ajudar a pensar a História, a escravidão transatlântica, as lutas anticoloniais. Em 1987, Toni Morrison publicou ‘Amada’ e abriu meus olhos para o que Saidiya Hartman chama de ‘sobrevida da escravidão’ e o que hoje eu chamo de ‘vestígios da escravidão’. Ela dá uma vida interior rica e cheia de nuances aos escravizados que também é possível pensar a escravidão a partir disso.”
O público leitor
Com meus livros, quis atingir um público maior do que o acadêmico e ser acessível à minha própria família, que não teve tanto acesso à educação. Meu pai e minha mãe eram brilhantes, mas estudaram só até o Ensino Médio. Também quis atingir leitores negros que pensam e teorizam, que são ativistas e criadores, que estão engajados nos mesmos materiais de pesquisa que eu, mas que acham a linguagem acadêmica inacessível.
Democracia
Os Estados Unidos não são uma verdadeira democracia. São uma democracia fundada na escravidão legal, para a qual os negros eram propriedade, não pessoas. Esse fato marca a democracia americana até hoje. O mesmo acontece em todos as nações que se basearam na escravidão, no descarte e na morte de pessoas negras. Esse passado continua vivo no presente, como parte necessária dessas democracias. Precisamos imaginar outras formas de governo que possam desfazer essa situação. Aqui em Paraty, me disseram que não importa qual a porcentagem de população negra nos estados brasileiros, porque em todos eles a maioria das pessoas assassinadas sempre será negra.
Paraty colonial
Quando dizemos que Paraty é uma cidade colonial, não há como ignorar o que o adjetivo “colonial” remete à expulsão de povos indígenas de suas terras e à importação de africanos durante a escravidão. Essa história de violência continua com o assassinato de pessoas negras e de pessoas que defendem o direito à terra. No entanto, as pessoas querem esquecer essa História e imaginar que colonial tem um significado romântico. Mas não há como dizer que a arquitetura de Paraty é colonial sem se lembrar do massacre de africanos e indígenas aqui. Vindo para cá de São Paulo, pude imaginar como devia ser ter sido a vida dos escravizados aqui, quantas pessoas morreram para construir essa infraestrutura.
Imagens da violência
Se ver imagens de violência acabasse com a violência, não haveria mais violência. Imagens de violência contra negros circulam há séculos, desde antes da invenção da fotografia. Há a suposição de que todos desejamos o fim dessa violência, mas isso não é verdade. Há quem aprove essa violência. Depois do assassinato de Trayvon Martin (que originou o movimento Black Lives Matter), jovens brancos compartilhavam vídeos dele morto nas redes sociais e tiravam sarro. Hoje, há jovens israelenses que se divertem com sofrimento dos palestinos no TikTok. Essas imagens acabaram com a violência. Isso não quer dizer que essas imagens não devam ser registradas. Mas uma coisa é registrar e testemunhar. Outra é acabar com a violência.
Feminismo negro no brasil
Meu contato com intelectuais negros brasileiros ainda é pouco, mas vem aumentando. Enquanto escrevia minha tese de doutorado, li bastante sobre a escravidão em inglês. Recentemente, li Beatriz Nascimento (1942-1995, historiadora) e também o romance “Solitária”, de Eliana Alves Cruz. Também conheço o trabalho de intelectuais negros brasileiros que estão nos EUA, como Denise Ferreira da Silva e João Costa Vargas. Estou no Brasil já poucos dias, mas já foi possível construir conexões e pensar em como traduzir para o inglês e fazer circular o trabalho de feministas negras brasileiras com quem precisamos dialogar.
Serviço:
“No vestígio: Negridade e existência”
Autora: Christina Sharpe. Tradução: Jess Oliveira. Editora: Ubu. Páginas: 264. Preço: R$ 69,90.
“Algumas notas do dia a dia”
Autora: Christina Sharpe. Tradução: Jess Oliveira. Editora: Fósforo. Páginas: 88. Preço: R$ 39,90.