RIO — A Fundação Palmares pretende excluir de seu acervo todas as obras sobre o político, escritor e guerrilheiro comunista Carlos Marighella (1911-1969) , um dos principais organizadores da luta armada contra o regime militar de 1964. De acordo com Sérgio Camargo, presidente da instituição , também serão retiradas “obras de glorificação a Che Guevara” e “livros que promovem pedofilia, sexo grupal, pornografia juvenil, sodomia e necrofilia”.
A ideologização das políticas públicas tem sido mais visível na Secretaria Especial da Cultura , sob a qual está a Fundação Palmares. Sob a gestão de Camargo, multiplicam-se as ações para agradar a base bolsonarista. No último dia 25, ele já havia postado uma foto com livros de Marx e Stalin que supostamente se encontravam no acervo da instituição. "É um escândalo! É um escárnio! De e sobre Karl Marx, são mais de 400 obras. De e sobre Stalin e Lenin, uma centena de obras. Todas contrariam nossa missão institucional. O marxismo será exorcizado da Palmares!", escreveu.
Camargo não especifica quais livros de Marighella serão retirados. Sua obra mais conhecida, "Minimanual do guerrilheiro urbano" (1969) detalha operações de guerrilha e circulou principalmente em versões mimeografadas e fotocopiadas. Atualmente, encontra-se fora de catálogo. Mas o guerrilheiro também foi poeta, com coletâneas publicadas postumamente. A mais recente edição em livro de textos de Marighella é "Chamamento ao povo brasileiro" (2019), organizada por Vladimir Safatle, e que reúne um conjunto de artigos do autor sobre temas como lutas populares, questões agrárias e o golpe militar de 1964.
Em entrevista ao GLOBO, o autor da biografia "Marighella - O guerrilheiro que incendiou o mundo", o jornalista e escritor Mario Magalhães diz que o governo está reintroduzindo um "index de livros proibidos" no país.
— É uma atitude liberticida, que reintroduz métodos de censura de governos intolerantes e opressivos do passado, como nas ditaduras do Estado Novo e na de 1964 — diz. — É lamentável que esses tempos de trevas tenham regressados. Ninguém é obrigado a amar ou odiar Marighella , mas é um direito de cidadãs e cidadãos conhecerem a trajetória do revolucionário. O conhecimento é um direito humano e censura é coisa de ditadura.
Baseado no livro, a cinebiografia "Marighella", deve enfim estrear nos cinemas dia 4 de novembro, após diversos problemas com a Ancine e cancelamentos. O diretor Wagner Moura chegou a dizer que o atraso se deveu a "questões políticas".
Segundo Camargo, o processo de revisão do acervo da Palmares está sendo comandado por Marco Frenette, coordenador geral do CNIRC (Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra da Palmares). Em seu perfil no Twitter, Frenette se define como “jornalista, escritor e conservador”.
Em uma postagem no Facebook , o coordenador do CNIRC afirmou que está “desmontando uma escola de delinquência”.
Frenette dá alguns exemplos do que supostamente encontrou na biblioteca da Palmares: “Há desde livros defendendo a abordagem pedófila em crianças de quatro e cinco anos de idade até livros que ensinam a fazer greves, guerrilhas e revoluções, passando por obras esdrúxulas sobre OVNIS, parapsicologia, fobias e técnicas de assassinato praticadas por cangaceiros”.
Frenette argumenta que “o que existe hoje é um material de incentivo ao ressentimento e ao vitimismo como estilo de vida, dividindo artificialmente os brasileiros”.
Segundo o dirigente, ao final do processo de exclusão das obras, será divulgado um relatório público. O GLOBO questionou a Fundação Palmares sobre a listagem de obras que serão excluídas, mas o jornal ainda não obteve resposta.
Organizador de "Chamamento ao povo brasileiro" (2019), Vladimir Safatle disse ao GLOBO que a censura aos livros na Fundação Palmares mostram que "a luta de Marighella ainda é atual".
— Não cabe em hipótese alguma que um funcionário público definir o que é pornografia e o que naõ é, o que é perversão e o que não é. Personagens como esses se vendem como o bastião do liberalismo contra controle socialistas, mas são os primeiros a tomar de assalto o estado para impor a todos os setores o que eles entendem o que deve ser a sociedade brasileira.
Ex-presidente da Fundação Palmares, o advogado Eloi Ferreira acusa Camargo de tentar desviar o foco da CPI da covid-19.
— Esse senhor que está a frente da Fundação Palmares é a expressão da estupidez e representa com lealdade canina as ideias de quem o colocou lá — diz. — Pode ser somente coincidência, mas sempre ele sempre se presta a gestos histriônicos para tirar a atenção de alguma situação. Agora, que a CPI intensifica as investigações para apurar as responsabilidades sobre as quase 500 mil mortos na pandemia, ele aparece prestando-se a esse papel desprezível. Esse governo tem lugar cativo no lixo da história.