Cultura

Funk 'ostentação' é sucesso na internet e vira tema de documentário

Vertente que começou em São Paulo ganha o país com referências a marcas de roupas, carros e joias caras

RIO - Ele já foi proibidão. Já teve momentos mais violentos, de denúncia, pornográficos e até românticos. Continua vivo em todas essas vertentes, mas elas parecem ofuscadas no momento pela onda... da tiração de onda. A pegada paulista do funk – que se alastra como fogo pelo país pelo YouTube – lista nomes de carros, bebidas caras, ‘kits’ (roupas de grife + tênis de marca + cordão de ouro) e não quer saber de 'miserê'. Sua mola propulsora é mesmo o vídeo na internet. Não à toa, a história do estilo (?) acaba de ganhar o documentário "Funk ostenteção", feito para ganhar a rede nesta terça.

A tendência é recente. Não chega às rádios, pouco aparece na TV, não bomba nos downloads. Mas quem precisa disso em tempos de vídeo em streaming? MC Guimê tem mais de 15 milhões de acessos no YouTube com “Plaquê de cem” ("contando plaquê de cem, dentro de um Citroen"). MC Boy do Charmes chegou a 20 milhões com “Onde eu chego paro tudo” (“Meu cordão é um absurdo, meu perfume é da Armani, de Christian ou de Oakley, de Tommy ou Lacoste”).

Esses e outros são os personagens do documentário concebido por Renato Barreiros e Konrad Dantas. Ele conta a trajetória do funk em São Paulo desde o ponto de partida – a Baixada Santista, primeiro canto do estado que incorporou para valer o gênero carioca às festas. Mostra como empresários e produtores passaram a levar, aos poucos, as gravações para “quermesses, festas de criança e tudo mais” da periferia da capital, começando pela Zona Leste, até então reduto do rap. Com o tempo, vieram os concursos de funk, em que não se podia falar de droga, sexo ou prostituição. Foi ali que MC Dede sobressaiu, com rimas sobre aquecimento global. Mas foi na ostentação que ele se firmou: com “Olha o kit”, foi um dos pioneiros na arte de listar e mostrar tudo que é sonho de consumo da tão falada classe C.

Entre 2008 e 2009 veio o primeiro grande sucesso do gênero com letra voltada para as referências endinheiradas: "Bonde da Juju" , do MC Bi0 G3, listava: "Tá de Juliet, Romeo 2 e Double Shox, 18k no pescoço". Mas a turma de MCs que se vangloria do dinheiro dificilmente estaria fazendo tanto sucesso se não fossem os clipes. O primeiro, em 2011, foi "Megane", do MC Boy do Charmes (referência à comunidade onde mora em São Vicente, na Baixada Santista). Um divisor de águas.

– Com certeza o clipe e o Youtube ajudam 80% na carreira de um MC hoje – diz o MC, que já foi pedreiro, faxineiro, porteiro e, depois da virada, já fez shows em todas as regiões do país.

Por trás de "Megane" e boa parte dos clipes do funk ostentação está Konrad Dantas. Aos 23 anos, o rapaz do Guarujá se firmou como personagem dos mais importantes da guinada de sucesso do funk ostentação. Em um ano de carreira, ele é responsável por cerca de 50 clipes com mais de 50 milhões de visualizações.

– Sabia que havia uma massa carente de audiovisual. As pessoas que tinham capacidade técnica de fazer bons vídeos odiavam funk do fundo do coração. Mas nesse novo segmento do funk a galera percebeu que sem clipe ia ficar pra trás. Então a gente se propôs a mudar a estética – explica Konrad, que fez cursos de cinema digital, 3D e largou o emprego em agência publicidade para abrir sua produtora, a Kondzilla. – Acredito que registramos o cotidiano das ruas de São Paulo, muitos carros de luxo e joias já existiam nas comunidades da capital, o que fizemos foi retratar essa realidade e apresentar ao Brasil.

Coerente com o clima das letras dos funks, Konrad abre todos os clipes com a logo de sua empresa e não vê problemas em dirigir o documentário sobre uma história do qual  é um dos personagens principais. Ele conta que cresceu ouvindo hip hop e vendo clipes de rappers americanos, que são a inspiração assumidíssima para a estética carrão-mulherão dos clipes. Hoje, garante em depoimento ao filme, vários dos MCs “conseguem viver a ostentação que pregam”, porque fazem cerca de 20 shows por semana.

Os valores investidos no audiovisual vão subindo com o sucesso: o último clipe de Nego Blue, "É o fluxo" , custou 40 mil reais - com direito a jatinho - e rendeu quase dois milhões de views em um mês e meio. E para quem pensa que ostentação é coisa de paulista, Konrad avisa: tem vindo cada vez mais ao Rio para produzir clipes. O mais recente foi "Mulher do poder" , da MC Pocahontas.

– É normal que as pessoas de todas as classes sociais tenham sonhos de consumo, o que move o capitalismo é exatamente isso – reflete Konrad, que não acha que a exaltação ao luxo estimula o "mau caminho", como o proibidão. – Seria o mesmo que dizer que jogos de guerra formam guerrilheiros, quando sabemos que são os que mais vendem e nem por isso tornam as pessoas mais violentas.

Diretor do Instituto de Pesquisas Data Popular , voltado para o comportamento da classe C, Renato Meireles vai no mesmo caminho em seu depoimento no documentário. "Quem disse que quem é da classe C gosta de tomar pinga e não whisky? Quem diz isso é a elite, a classe C quer falar que gosta de whisky sim, e não tem nada de errado nisso. É reflexo da melhora que o país teve, e brasileiro gosta de celebrar isso cantando."

O funkeiro carioca MC Leonardo, presidente da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (apafunk), vê a ostentação de modo diferente.

– Eu particularmente não quero fazer isso da minha arte porque acho que gera frustração em boa parte das pessoas. Mas acho que a cultura deve ser livre e que ela é reflexo da sociedade. Toda vez que a periferia escolhe um assunto tem que dar satisfação, vira bode expiatório, como se a ostentação não estivesse no discurso de tantos, como os políticos e jogadores de futebol.