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Cultura

'Ghosting', o velho 'dar um perdido', assombra ainda mais na pandemia e inspira livro 'Copo vazio'

Sintoma das relações na era digital já está presente na literatura, nos consultórios e nos estudos acadêmicos e acabou indo parar no livro de Natalia Timerman, que não conhecia o termo
Trecho de uma tirinha de Bruna Maia, cartunista e autora do perfil "Estar morta" nas redes sociais Foto: Bruna Maia / Divulgação
Trecho de uma tirinha de Bruna Maia, cartunista e autora do perfil "Estar morta" nas redes sociais Foto: Bruna Maia / Divulgação

Natalia Timerman escreveu um livro sobre ghosting sem nunca ter ouvido esta palavra, que remete a fantasma em inglês. Na era das redes sociais, “dar um ghosting ” é o mesmo que “dar um perdido”. É terminar abruptamente um relacionamento iniciado em algum aplicativo de paquera sem dar nenhuma explicação e sem avisar a outra pessoa de que o rolo acabou.

Alguém sabe que sofreu um ghosting quando percebe que o “contatinho”, até poucos dias tão carinhoso, virou fantasma: não atende mais as ligações nem retorna as mensagens. Em casos extremos, o coitado ainda passa pela humilhação de ser bloqueado nas redes sociais do “ex”.

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Mirela, a protagonista de “Copo vazio”, romance de estreia de Natalia, publicado recentemente pela Todavia, passa por todos os estágios do ghosting , do match (quando duas pessoas se curtem num aplicativo de relacionamentos) ao “stalkeamento” (quando a pessoa é vigiada virtualmente por outra). Arquiteta e metódica, ela conhece Pedro, cientista político e reservado, num app de paquera. Os dois se dão bem, passam alguns meses juntos e até planejam uma ida a Minas Gerais para visitar a avó dele. Poucos dias antes da viagem, Pedro some. Não atende mais o telefone nem responde às mensagens desesperadas de Mirela, que passa a stalkeá-lo até ser bloqueada nas redes sociais.

— Não sabia o que era ghosting . Uma amiga leu o manuscrito e disse: “Isso aqui tem um nome, se chama ghosting .” Aí fui me informar e descobri que já existem estudos sobre isso — diz Natalia em conversa por Zoom.

“Copo vazio”, admite Natalia, nasceu de uma “semente autobiográfica que se expandiu numa árvore ficcional”. Mirela, que passa quase o livro todo sofrendo e tentando entender o sumiço de Pedro, despertou a empatia de leitores que já sofreram (ou provocaram) a dor de um ghosting .

Feito poção mágica

Natalia Timerman, psiquiatra e escritora Foto: Edilson Dantas / O Globo
Natalia Timerman, psiquiatra e escritora Foto: Edilson Dantas / O Globo

Natalia é psiquiatra e psicoterapeuta. “Copo vazio” é seu terceiro livro. Entre 2012 e 2020, ela trabalhou no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, em São Paulo, e relatou a experiência em “Desterros”, livro lançado em 2017 pela Elefante. Tanto no hospital quanto em seu consultório, ouviu muitas histórias de homens e (principalmente) mulheres que passaram por situações semelhantes às de Mirela. Segundo ela, o sofrimento se intensificava quando as bandeiras que a pessoa empunhava não davam contar de aplacar a dor da rejeição.

— Vi mulheres independentes que articulavam discursos perfeitos, mas não conseguiam habitá-los. Parecia haver uma lacuna entre o que elas diziam e acreditavam e o que elas sentiam — conta Natalia.

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Natalia ponderou se este era o melhor momento para lançar “Copo vazio”, um livro cheio de “festa, suor, abraço, rua”, ou seja, tudo o que foi banido pela pandemia. No entanto, uma das coisas que o coronavírus não levou embora foi o ghosting . A psicanalista Maria Homem tem ouvido mais relatos de ghosting e também de curving desde o início da pandemia.

Curving é mais um termo muito presente nesses tempos de relacionamentos líquidos (confira outros no glossário ao abaixo) . É quando o sumido reaparece cheio de desculpas esfarrapadas, mas mesmo assim dá um jeito de nunca marcar o date .

— O ghosting é a realização daquele sonho de ter uma poção mágica que nos faça desaparecer — diz Maria Homem. — Se está chato ou eu não sei o que desejo, ou se me posicionar diante do outro dá preguiça ou é complicado, eu, pluft! , sumo como um fantasminha. Se por um lado não precisamos entrar em todas as relações, o desafio é saber o que se quer e onde se quer estar.

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Lucas Andrade (nome fictício) , de 31 anos, é categórico: levar ghosting na pandemia dói mais. Ele conheceu um rapaz por um aplicativo de paquera e o papo “fluiu como há muito tempo não acontecia”. Depois de um mês de conversas, resolveram se encontrar. No dia seguinte, Andrade mandou uma mensagem perguntando se ele tinha chegado bem em casa. O rapaz visualizou a mensagem, mas não respondeu até hoje.

Segundo Pollyane Belo, que pesquisa relações na contemporaneidade no programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a pandemia facilitou “a pulverização dos elos e de cerimônias sociais, como o romance”.

— Nunca nos sentimos tão sozinhos e com tanta necessidade de vínculo social. Contudo, não conseguimos o que vem atrelado a todo relacionamento: medo, ansiedade, decepção — diz.

‘Crueldade e comodismo’

A cartunista Bruna Maia, autora de “Parece que piorou” (Quadrinhos na Cia) e do perfil @estarmorta nas redes sociais, não sofreu nenhum ghosting na pandemia, mas já viu vários contatinhos desaparecerem sem dar explicação. Houve até um cara que, às 20h, prometeu que estaria na casa dela até as 22h e não apareceu até hoje. Por um tempo, ela também praticou o ghosting .

— Quis tratar os homens como eles me tratavam — conta. — É muito cômodo simplesmente parar de responder mensagens sem precisar assumir que não está mais a fim. É uma mistura de crueldade e comodismo.

Desde que lançou “Copo vazio”, Natalia anda ouvindo muitas outras histórias de ghosting . Nas redes sociais, recebe áudios de leitores contando suas desilusões amorosas e admitindo que já sofreram como Mirela e que também já se comportaram como Pedro.

— Uma pessoa me escreveu para dizer que estava quase entrando numa obsessão como a da Mirela, mas, lendo o livro, percebeu que não precisava, que era uma opção — diz Natália.

E um dos pacientes já avisou que não vai nem ler o livro. Para não “dar gatilho”.

Colaborou Maria Fortuna

Glossário do relacionamento líquido

Cloaking: Sumir sem dar satisfações, como ghosting , e ainda bloquear nas redes sociais.

Zombie-ing: Quando a pessoa que deu ghosting (virou fantasma) volta (como se fosse um zumbi).

Breadcrumbing: Em bom português, distribuir migalhas só para deixar uma pessoa interessada.

Love bombing: Quando uma pessoa se apaixona muito rápido e assusta a outra com “bombardeios de amor”.

Orbiting: Continuar interagindo com a pessoa nas redes sociais mesmo após o término do relacionamento.

Benching: Brincar com as expectativas da pessoa, deixando-a “no banco”.

Serviço:

“Copo vazio

Autora: Natalia Timerman. Editora: Todavia. Páginas: 144. Preço: R$ 62.