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Cultura

'Gosto do debate, mas não aceito que me digam para ficar calada', diz Lina Meruane

Em 'Tornar-se palestina', escritora chilena examina a linguagem usada para descrever conflito com Israel e critica a paz proposta por Amós Oz
A escritora chilena Lina Meruane: "as instituições pressionam as mulheres a ter filhos e depois excluem-nas do mundo social e do trabalho" Foto: Lorena Palavecino/Divulgação
A escritora chilena Lina Meruane: "as instituições pressionam as mulheres a ter filhos e depois excluem-nas do mundo social e do trabalho" Foto: Lorena Palavecino/Divulgação

SÃO PAULO – Poucas horas antes do ataque a bomba de gás lacrimogênio ao restaurante palestino Al Janiah, no centro de São Paulo, a escritora chilena Lina Meruane lançava ali seu novo livro: “Torna-se palestina”. Lina é neta de palestinos cristãos emigrados para Chile, mas só conheceu a terra de seus antepassados em 2012. A viagem a ajudou a repensar o conflito entre israelenses e palestinos.

“Tornar-se palestina” é dividido em dois ensaios: no primeiro, que tem o mesmo título do livro, ela narra sua viagem; no segundo, “Tornar-nos outros”, ela examina como a linguagem escolhida para descrever a questão palestina pode iluminar ou obscurecer a realidade. Lina chama intelectuais de peso para o debate, como Edward Said e Susan Sontag, e não perdoa Amós Oz.

Lina leciona em Nova York é autora de uma obra que vai da ficção (elogiada por Roberto Bolaño) ao ensaio. Até agora, tem três livros editados no Brasil. No ano que vem serão quatro: a editora Todavia vai publicar o romance “Sistema nervioso”.

De passagem por São Paulo, Lina explicou ao GLOBO suas diferenças com Oz e sua admiração por Clarice Lispector, “uma extremista da linguagem”.

Você tem três livros publicados no Brasil: o romance “Sangue no olho”, o ensaio “Contra os filhos” e, agora, “Tornar-se palestina”. O que esses livros tão diferentes têm em comum?
Também me faço essa pregunta. Meus primeiros romances e o ensaio “Viajes virales”, que é sobre a AIDS na literatura latino-americana, eram sobre a representação da doença e o doente dentro de um sistema normativo que tem a ver com oposições, como bem e mal, eu e o outro, centro e periferia. Essa oposição também existe na linguagem usada para falar da questão palestina. “Tornar-se palestina” retoma minha preocupação com os que vivem à margem, com o outro que é rejeitado por ser diferente mas também é parte do todo. Em “Contra a maternidade”, eu voltei a pensar em como as instituições políticas, médicas e religiosas pressionam as mulheres a ter filhos e depois excluem-nas do mundo social e do trabalho.

Você se tornou palestina de depois de viajar à terra de seus antepassados?
Cheguei à Palestina ocupados um pouco ingênua, sabendo que havia um conflito, mas sem vivê-lo na carne. Fui muito impactada por aquela situação política, que era quase abstrata para mim, mas se tornou uma experiência intelectual, emocional e física. Entendi que o “retornar à Palestina” é sentir-se parte de uma comunidade discriminada. O passo seguinte foi refletir, posicionar-me intelectualmente. Esse livro me mudou, me fez palestina. Ainda sou chilena, mas agora também sou palestina.

No livro, você diz que as palavras podem tanto iluminar quanto ocultar a realidade. Como assim?
A linguagem é a matéria-prima o escritor, é a massa com que ele está sempre trabalhando. Sempre acreditei que a linguagem literária nos permitia pensar criticamente. Confiava total e absoluta nas possibilidades estéticas e políticas da linguagem. Ao ler sobre a questão palestina, dei-me conta de que a linguagem também pode ser uma armadilha e ocultar a realidade. A linguagem pode iluminar a realidade ou obscurecê-la. Ao escrever sobre a Palestina, eu podia facilmente em uma armadilha e adotar a linguagem do poder, de Israel. Sempre que leio a imprensa, obrigo-me a pensar em como a linguagem está sendo ocupada. Por exemplo: o que Jair Bolsonaro realmente está dizendo quando acusa Emmanuel Macron de colonialista? De que maneira Bolsonaro manipula essa expressão? Precisamos interrogar essa palavra que é justa em certos contextos, mas não neste.

O que é “vocação terrorista de chamar as coisas pelo nome” que você menciona no livro?
É uma provocação. Usar a linguagem de maneira subversiva, contra a linguagem oficialista, é sempre visto como um ato violento, terrorista, pelo statu quo . Para o poder, a literatura é sempre terrorista, porque faz pensar, interroga o senso comum e imagina outros universos. Penso na literatura de escritoras como Diamela Eltit (chilena) e Elfriede Jelinek (austríaca ), que têm posições políticas e estéticas muito questionadoras. Ou de Clarice Lispector, que foi subversiva, ao se desviar do lugar comum e repensar o lugar da mulher e a linguagem. Ela era uma extremista da linguagem.

Capa do livro "Tornar-se palestina", da escritora chilena Lina Meruane Foto: Reprodução
Capa do livro "Tornar-se palestina", da escritora chilena Lina Meruane Foto: Reprodução

Amós Oz é lembrado como uma voz em defesa da paz entre israelenses e palestinos, mas você o acusa de propagar um discurso “oficialista”. Por quê?
Oz representa o discurso pacifista, amigável aos palestinos. Mas quais os termos da paz proposta por Oz? O discurso dele é atravessado por uma ideia problemática: o empate. Os dois lados teriam cometido os mesmos horrores e se atacaram mutuamente. Esse discurso nega que há uma ocupação e que os dois lados não têm o mesmo poder de negociação. Israel tem voz e voto em todas as instituições mundiais, tem o apoio dos Estados Unidos e da Europa. Os palestinos não têm sequer um Estado. Não há empate. Se os palestinos respondem com violência é porque não têm opção. Gaza é um cárcere a céu aberto. Acordos de paz em que um lado sai totalmente derrotado e outro completamente vitorioso só podem produzir uma paz intermitente.

Que críticas você recebeu por esse livro?
Disseram que eu não entendia a situação dos palestinos. Que os israelenses só estão se defendendo. Acusaram-me de querer ficar rica às custas dos palestinos. Recebi muitas advertências. Pessoas muito amáveis me disseram que não devia falar ou escrever sobre isso. Sei em quais brigas me meter. Gosto do debate, mas não aceito que me digam para ficar calada.

SERVIÇO

“Tornar-se palestina”
Autora: Lina Meruane
Editora: Relicário
Tradutora: Mariana Sanchez
Páginas: 200
Preço: R$ 42