O cineasta mineiro Helvécio Marins Jr. se mudou em 2018 para Cuba. Não a ilha, mas a vila de três mil habitantes no Alentejo, zona rural de Portugal. Entre uma colhida no laranjal e o manejo do rebanho de 36 ovelhas, encontrou o título de seu novo filme na placa de boas-vindas da quinta do vizinho: “Se vens por bem, podes entrar. Se vens por mal, põe-te a cavar”.
Diante das notícias dos últimos dias, o ditado poderia ter outro complemento: “Se vens por bem, podes entrar. Mas não agora’’. Portugal, no pior momento da pandemia de coronavírus, suspendeu até 14 de fevereiro os voos comerciais e privados de e para o Brasil devido a novas cepas e aumento dos casos.
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Se durar duas semanas, a medida não causará grandes transtornos no abundante intercâmbio nas telas entre os países. Mas já atrasou os planos de Marins, que receberia em Cuba o diretor carioca Felipe Bragança para trabalharem no roteiro.
— Estamos discutindo o que fazer — disse Marins.
Bragança complementa:
— Pode atrasar planos, mas é passageiro. Vamos ver se adiamos um pouco.
Apesar do momento de incertezas, sob a égide dos efeitos da pandemia em filmagens, coproduções e festivais em curso mostram que é intensa a parceria entre os dois países no audiovisual. No Rio, por exemplo, a mostra “De Portugal para o mundo’’, com 28 filmes, começa a partir de quarta-feira no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Na estreia, “Vitalina Varela’’, de Pedro Costa, candidato à indicação ao Oscar de filme internacional.
— Isso reflete o interesse recente do público brasileiro pelo cinema português. Muitos brasileiros emigraram nos últimos três anos (são 151 mil residentes oficiais) e há diretores indo fazer cinema — conta Pedro Henrique Ferreira, curador da mostra.
Marins foi um deles. Deixou Minas Gerais, onde filmou “Querência’’, trama sobre gado e rodeios, mas ainda gravita ao redor do tema. O argumento de “Se vens por bem...’’ envolve ciganos, alentejanos e um personagem real que é símbolo da luta contra a ditadura do Estado Novo: Camilo Mortágua, que faz 87 anos nesta sexta-feira e vive a 15 minutos de Cuba.
— Eu sou o retrato desta ponte entre Brasil e Portugal e me envolvo muito com as pessoas e os lugares — ressalta Marins.
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Bragança está entre lá e cá há três anos. Fez “Tragam-me a cabeça de Carmen M’’, com a portuguesa Catarina Wallenstein, e “Um animal amarelo’’, coprodução da O Som e a Fúria com a Duas Mariola:
— Vou começar em Portugal um projeto para filmar “Macunaíma’’, de Mário de Andrade. A Europa era a ponta final, um complemento de 20% para o orçamento. Agora, a busca começa na raiz.
Após perder o irmão, Daniel Azulay, para o coronavírus em março de 2020, Jom Tob Azulay foi a Portugal em outubro do mesmo ano para finalizar a restauração de “O judeu’’ (1995). Outro filme dele, “Os Doces Bárbaros’’, teve duas exibições lotadas no Porto e em Lisboa. A ideia é pôr ambos em cartaz em Portugal, estratégia adiada pela pandemia:
— Estava tudo combinado, mas aconteceu o coronavírus. Milagrosamente, consegui, às vésperas da segunda onda, fazer a masterização digital de “O judeu’’.
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Miguel Gomes faria caminho inverso. O diretor lisboeta de “Tabu’’ (2012), também na mostra, estaria em Canudos, na Bahia, filmando “Selvajaria’’, adaptação de “Os sertões’’, de Euclides da Cunha. Mas só retomará quando a pandemia deixar.
— É complicado fazer planos, porque é um filme de contato físico — diz o produtor Luís Urbano.
A portuguesa Susana de Souza Dias também quer voltar ao Brasil para expandir o documentário “Fordlândia Malaise”. Ela não havia filmado fora de Portugal até encontrar no Pará a cidade idealizada pelo empresário norte-americano Henry Ford:
— As pessoas estão lá reivindicando a vida, ainda que num limbo, sem certeza de dias melhores.
Ponte fechada
Lisboa sediou em novembro de 2020 a terceira mostra de cinema brasileiro, primeiro festival nacional no exterior pós-quarentena. No IndieLisboa do ano passado, “A febre’’, de Maya Da-Rin, venceu o grande prêmio.
Há mecanismos de financiamento para coprodução por meio do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) português. Um deles é o protocolo luso-brasileiro, que beneficiou “Vestido branco, véu e grinalda’’, longa de Marcelo Gomes coproduzido pela portuguesa Ukbar Filmes.
—Mas há uma ponte que está fechada do lado brasileiro, que é o protocolo luso-brasileiro, interrompido pela Ancine e que cessa financiamentos portugueses — explica Urbano, produtor de “Pedro’’, de Laís Bondanzky,
“Greice’’, de Leonardo Mouramateus, captou R$ 2 milhões do BNDES em 2015 e será filmado entre Lisboa e Fortaleza. Em Portugal desde 2014, Mouramateus fez “Antônio um dois três’’, com a brasileira Da Praia e a portuguesa Filmes do Asfalto.
— Entrar na roda é complexo — afirma.
Experiente, Pedro Costa já tem a fórmula:
— Tento fazer o contrário da inflação e manter a produção sem sacrifícios. Ganho mil vezes menos que um diretor europeu, mas, com racionalidade, dá para viver da receita dos filmes.