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Cultura

Jacqueline Woodson: 'Pessoas brancas diziam na minha cara que no Brasil não existia racismo'

Premiada autora e ilustradora infantojuvenil lança 'Um outro Brooklyn', romance que mistura ficção, não ficção e poesia ao falar do embranquecimento de um bairro
A escritora e ilustradora americana Jacqueline Woodson, autora de "Um outro Brooklyn", romance publicado pela Todavia Foto: Carlos Diaz / Divulgação
A escritora e ilustradora americana Jacqueline Woodson, autora de "Um outro Brooklyn", romance publicado pela Todavia Foto: Carlos Diaz / Divulgação

SÃO PAULO – A escritora e ilustradora americana Jacqueline Woodson ainda se recorda de quando passou um mês inteiro em São Paulo, há mais de dez anos, e várias pessoas tentaram convencê-la de que não havia racismo no Brasil .

– Pessoas brancas diziam na minha casa, com ar de superioridade, que o Brasil não era como os Estados Unidos, que os brasileiros não eram racistas, que aí não se excluía os mais pobres – contou Jacqueline ao GLOBO, por telefone. – Eu reagia: “Ah, tá”. A segregação era visível. Nos restaurantes, só os garçons eram negros. Eu gostaria de voltar ao Brasil para ver se as coisas mudaram.

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Jacqueline se lembrou da viagem ao Brasil quando o assunto da conversa era “gentrificação”, a apropriação de bairros populares por jovens de classe média alta meio hipsters, que resulta na elevação dos aluguéis e na expulsão dos antigos moradores. Nascida em Ohio, no Meio-Oeste americano, em 1963, Jacqueline se mudou com a família, na década seguinte, para Bushwick, bairro do Brooklyn, distrito nova-iorquino que, no últimos anos, caiu nas graças da juventude deslocada. Naquela época, Bushwick era um bairro ocupado por populações negras e latinas que acabaram expulsas pela gentrificação, palavra que Jacqueline recusa.

– A palavra correta é colonização. Ninguém “descobre” um bairro, porque já havia gente morando nele. Assim como Cristóvão Colombo não descobriu a América. Ele colonizou a América.

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“Um outro Brooklyn”, o primeiro romance adulto de Jacqueline, mais conhecida por seus livros infantojuvenis, traz uma dedicatória inusitada: “Para Bushwick (1970-1990). Em memória”. Ela já não mora em Bushwick, mas continua no Brooklyn. Quando atendeu O GLOBO, nos primeiros dias de maio, estava há sete semanas longe de Nova York. A epidemia do novo coronavírus a obrigou a se recolher em sua casa de campo com os filhos. A companheira de Jacqueline é médica e precisou ficar em Nova York.

No campo, Jacqueline tem pouco tempo para escrever. Ela ajuda os filhos a acompanhar as aulas pela internet e precisou interromper a conversa com o GLOBO algumas vezes para instruir as crianças a levar o cachorro para fora. Também faltou tempo para comemorar o Prêmio Hans Christian Andersen, apelidado de “Nobel da literatura infantil”, que ela venceu no último dia 6. Jacqueline já recebeu mais de cem prêmios.

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Ficção, não ficção e poesia

Jacqueline é autora de 19 livros infantojuvenis, 13 livros ilustrados e dois romances adultos: “Um outro Brooklyn”, recém-lançado pela Todavia, e “Red at the Bone”, best-seller do “New York Times” que deve sair por aqui no ano que vem.

Em "Um outro Brooklyn", os personagens são todos fictícios. Mas há espaço também para a não ficção e a poesia. A narradora é Augusta, uma antropóloga que roda o mundo estudando os rituais funerários de diferentes povos e volta ao Brooklyn para o velório do pai. Nos anos 1970, depois que a mãe enlouqueceu ao saber que seu irmão morrera no Vietnã, ela se mudou, com o pai e o irmãozinho, do Tennessee, no Sul dos EUA, para Bushwick. Lá, fez amizade com três meninas: Gigi, Sylvia e Angela.

Capa de "Um outro Brooklyn", romance da escritora e ilustradora americana Jacqueline Woodson Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Um outro Brooklyn", romance da escritora e ilustradora americana Jacqueline Woodson Foto: Reprodução / Divulgação

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A não ficção está presente em todas as obras de Jacqueline, descritas por ela como "psicologicamente autobiográficas". Neste livro, nas memórias de Augusta, que são um relato de como foi crescer negra e pobre em Bushwick.

– Os eventos e os personagens são inventados, mas eu já senti e pensei tudo o que eles sentem e pensam – explica.

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Já a poesia aparece na narração de Augusta, sempre atenta às cores, aos cheiros e à música. “Se tivéssemos o jazz, teríamos sobrevivido de outra forma”, pergunta-se ela. “Tínhamos as músicas do Top 40 dos anos 1970 tentando contar nossa história. Ele nunca nos entendeu muito bem”.

– Se eu tivesse nascido depois do hip hop, teria sobrevivido de outra forma – acrescenta Jacqueline. – Diferentemente de mim, meus filhos tiveram a sorte de nunca viver em um mundo sem o hip hop. Eu cresci numa família religiosa, só ouvia a música dos Testemunhas de Jeová e o Top 40 dos anos 1970. Se não tivesse crescido ouvindo música ruim de gente branca, talvez fosse outra pessoa.

SERVIÇO

Um outro Brooklyn . Autora: Jacqueline Woodson. Tradução: Stephanie Borges. Editora: Todavia. Páginas: 120. Preço: R$ 49,90.