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Cultura

Janaina, filha de Leila Diniz: 'Tenho um encontro marcado com a mãe que não tive'

Diretora, produtora e roteirista, Janaina Diniz, que perdeu a mãe aos sete meses, fará filme e série baseados nos diários inéditos da atriz, conta como foi crescer com essa ausência e diz o que faria se a encontrasse: 'Pediria colo'
Janaina Diniz: 'O filme é a minha abordagem como filha, do meu olhar contemporâneo, buscando essa mãe, a Leila Diniz que não é musa, mas a mulher por trás do mito' Foto: Leo Aversa / Agência O Globo
Janaina Diniz: 'O filme é a minha abordagem como filha, do meu olhar contemporâneo, buscando essa mãe, a Leila Diniz que não é musa, mas a mulher por trás do mito' Foto: Leo Aversa / Agência O Globo

Não, Leila Diniz não embarcou naquele avião que explodiu no ar vindo da Austrália, em 1972. Perdeu o voo como acontecera outras vezes em sua vida. Não voltou para casa porque perdeu também a memória. Em algum momento, vão avisá-la: "Você é a Leila Diniz, sua filha está te esperando no Rio de Janeiro".

Essa é uma das histórias que Janaina Diniz, filha da atriz com o cineasta Ruy Guerra, inventava para si mesma na infância tentando preencher o buraco pela perda da mãe quando era só uma bebê de 7 meses. Jana foi uma criança ruim para comer. Atribui a característica ao fato de ainda estar sendo amamentada na época da tragédia. A avó fritava um milhão de croquetes para a menina que recusava comida; Marieta Severo , melhor amiga de Leila e uma das muitas mulheres que adotaram Janaina, usava sorvete como moeda em troca do arroz e feijão.

Ela também tinha um sonho repetido: encontrava-se com Leila no parque de diversões, as duas brincavam até não poder mais e depois iam embora. Cada uma para um lado.

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Dois acontecimentos recentes fizeram a diretora, produtora e roteirista de 50 anos passar a vida de órfã em revista: as mortes de Marília Mendonça (de acidente aéreo com os mesmos 26 anos de Leila) e a de Paulo Gustavo.

— Vi em flashforward a vida dos filhos que eles deixaram. Tenho vontade de ligar para os adultos em volta dessas crianças e falar o que não devem fazer — diz. — A necessidade de suprir a presença de quem se foi só sublinha essa ausência. A pessoa pública que chegará nessas crianças é bem diferente dos pais que teriam.

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Entre memórias reais ou inventadas, Jana segue em busca da figura humana por trás de um dos maiores símbolos de liberdade feminina do país. Está prestes a mergulhar pela primeira vez nos sete diários que herdou da mãe. A partir deles, junto com a 02 Filmes, fará um filme e uma série documental. O projeto está sendo desenvolvido com prioridade máxima para ser apresentado aos streamings a tempo de ser realizado nos 50 anos da morte de Leila, em 2022.

Capa de um dos diários de Leila Diniz que a filha, Janaina Diniz, herdou: textos cobrem toda a década de 1960 Foto: Janaina Diniz
Capa de um dos diários de Leila Diniz que a filha, Janaina Diniz, herdou: textos cobrem toda a década de 1960 Foto: Janaina Diniz

Na entrevista a seguir, Janaina, cada vez mais a cara de Leila, diz guardar “fúria com as deusas” por ter sido privada da convivência com quem lhe ensinaria tanto como mulher. Descreve o pesadelo de cada Dia das Mães na escola e revela a autocobrança de ser a mãe perfeita justamente por ter crescido sem uma. Fala também do suicídio do avô materno.

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Como são as estruturas do filme e da série?

O filme é a minha abordagem como filha, do meu olhar contemporâneo, buscando essa mãe que não tive. A Leila Diniz que não é a musa, mas a mulher por trás do mito. Se chama "Despedaços" porque é juntar os pedacinhos para reconstruí-la. Não é uma linha cronológica. Terá imagens de arquivo e depoimentos. Na série, que a gente está chamando de "Toda mulher é meio Leila Diniz", é dar voz a ela, que conta a própria história através dos diários. É meio que uma autobiografia póstuma.

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O que há nesses diários?

Manuscritos, poemas, reflexões atemporais sobre a Humanidade. Nas poucas páginas que li, ela fala dela, da época, sobre Roberto Carlos, Elis Regina e Beatles. Sobre o que a atitude deles provocava nas pessoas. Compara a inconsciência da rebeldia do público de um com a consciência de outro. Diz que o fato de Elis explicitar faz com que o público tenha consciência da mensagem dela, enquanto Roberto, só usando o cabelo comprido e mandando tudo para o inferno, leva o público a uma rebeldia mais sem propósito.

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Seu pai te entregou os cadernos quando você tinha 15 anos. O que ele te disse naquele momento?

"Faz o que quiser. Se quiser queimar tudo e nem olhar...". Sabiamente, eu guardei. Naquele momento, não me interessava. Estava achando que podia mudar o mundo ( na Associação Municipal dos Estudantes Secundaristas e da Organização da Juventude Pela Liberdade ). Aliás, continuo achando... Acontece que tenho associações loucas, imagens, sensações que não sei se são memórias ou se invenções de memórias. Sempre achei que inventava memórias com ela e, num dado momento, vi numa foto um cenário que eu tinha em flashs quando pensava nela.

Será que você não tinha visto esse cenário em alguma das fotos que sempre circularam por aí?

Não, era uma foto desconhecida. E pensei: "Meu Deus, existiu, será que lembro?". Descobri que era um lugar onde ela me amamentava e pensei: "Será que quando a gente precisa de uma memória tão longe consegue acessar? Será que acesso porque preciso ou invento?". Transito nesse universo dessa mãe diferente do que a figura que as pessoas me trazem. Tenho flashes de mim dentro d'água e foi a Andrea Barata Riberto, minha parceira no projeto, quem me fez entender o motivo: passei mais tempo com minha mãe dentro d'água, na barriga, do que fora. Foram nove 9 meses lá dentro, e apenas sete fora. Olha que profundidade o olhar dela! Tenho orgulho de juntar os 50 anos sem Leila com os 30 anos de uma produtora com a importância da 02.

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Não teve vontade, curiosidade de ler os diários antes?

Achava que lidava super bem com o assunto. Tive que falar sobre desde criança, tenho isso organizado desde cedo. Lá pelos 30 anos, já trabalhava com cinema ( é formada em cinema pela Faculdade Gama Filho e estudou roteiro com Gabriel García Marquez, na Escola de Cine e TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba) e pensei em mostrar essa outra Leila Diniz através dos diários. Quando abri, entendi que não lidava bem. Que conseguia falar sobre, mas não com. Porque a a sensação era de ouvir ela falar. Também tive o entendimento de que precisava filmar o meu encontro com isso no momento em que acontecesse. Tenho um encontro marcado com a mãe que eu não tive.

Quando entendeu que também era sobre você, complicou...

Entendi que existe esse ângulo da perda, o ponto de vista daquela barriga grávida, icônica. Antes, estava achando que era a documentarista fazendo um filme sobre Leila Diniz com outra abordagem. Então, me vi como personagem e entendi que era interessante esse ponto de vista. Inclusive porque, ao longo da minha vida, vivi situações de troca com pessoas enlutadas, que perderam gente querida muito cedo. É peculiar, mas ao mesmo tempo universal, porque tem muita gente órfã.

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Mas ser órfã de um mito deve ser diferente. Como é?

A pessoa fica voltando porque nos é devolvido tudo que ela foi para os outros. Mas não é a mesma pessoa que você teria. Minha sensação de conhecimento dela é diferente do que me trouxeram a vida toda. Mesmo sem ter convivido, o ângulo é outro. Não sei explicar isso, mas a sensação é a de um conhecimento profundo e bem diferente do que as pessoas me trazem. Minhas perguntas para quem vai dar depoimento não são históricas, mas sobre a figura humana. Também penso no tanto de coisa que perguntaria a ela. Acho que vou ter essas conversas através dos diários. Um diálogo ao contrário: ela responde e eu pergunto.

O que perguntaria a ela?

Se ela se materializasse aqui e agora, acho que a primeira coisa ia ser física. Porque a gente é bicho, né? As primeiras perguntas seriam através do tato, dos olhos e, aí, eu ia pedir colo... Aquele colo de mãe, sabe? Depois, perguntaria sobre alguma das nossas contradições, sobre as relações humanas, a solidão, sobre como a gente é capaz de estar rodeado de tanta gente e sozinho ao mesmo tempo. Sobre essa linha que divide e também os pontos de interseção entre a solidão e a liberdade.

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Já pensa nos nomes que vai entrevistar? São familiares e amigos dela?

Os três irmãos dela e as primas com quem morou, amigas como Marieta ( Severo ), meu pai... Espero que eu consiga porque ele foge disso como o diabo da cruz, espero que de mim ele não escape.

Você vai precisar de um acompanhamento terapêutico para mergulhar nesses diários, né? Faz análise?

Com certeza, vou precisar, porque vou me ferrar muito. Passei a fazer lá atrás, quando abri algumas páginas de um deles, aos 30 anos. Fiquei sem me mexer, "tetraplégica". Não sabia que isso era possível. Caí num buraco que não tinha fundo. E falei: "Não dá!". Não conseguia levantar, andar, meu pé bambeava, meu braço ficou mole, não tinha força motora. Lembro perfeitamente da minha sensação de dar o comando, e o corpo não obedecer. Desfaleci.

( O músico e produtor ) Zé Ricardo, meu melhor amigo de adolescência, me resgatou. Foi a força bruta que me levantou, e minhas tias me levaram para o psiquiatra. Comecei a tomar remédio tarja preta e fazer análise. Nunca tinha feito. Naquela época não era tão comum. Eu tinha que ter feito desde sempre, né? Mas meu pai era muito assim: "Levanta daí, menina!".

E aí nunca mais parou a terapia?

Fiz e parei várias vezes. Percorri muitos caminhos, me explorei por vários ângulos. O que faltava era a minha coragem de me encontrar com minha mãe de fato. Esse encontro que está marcado para acontecer e não permiti que acontecesse. E nessa hora vou ter que voltar com tudo, análise, tarja preta ( risos ). Vou ter que estar amparada por todos, segurar a mãos dos amigues, da família, colos terão que ser acionados, porque o buraco vai ser fundo.

Durante a pandemia, você decidiu fazer os projetos. O que te fez achar que está pronta para encarar os diários?

Vários motivos. Um foi que a gente já estava tão fodido, né? ( risos ). Já estamos em terras devastadas, para onde mais posso me devastar? Costumo brincar que perdi minha mãe e ganhei todas as mães do mundo. Chego num lugar e alguém sempre me adota, todo mundo que conhece a história da minha mãe quer me dar um colo e vira minha mãe. Ganhei mães muito próximas, minhas tias irmãs da minha mãe, Marieta, Neni, que foi minha babá e é minha mãezona...

Mas quando acontece uma tragédia nessa proporção, você quer a sua mãe. Claro que um monte de gente não tem mais, mas eu não tive nunca. Aí veio a necessidade do resgate desse colo lá de bebê, o flash da amamentação... Porque quando a pessoa precisa do colo, ela vai para a memória dela lá de trás. Quando você perde a pessoa, coloca ela dentro de você de alguma maneira, a sua experiência com ela é o que fica para te abastecer depois que ela não está mais aqui. E aí pra onde eu vou nessa hora? Me deu a necessidade de encontrar o meu próprio colo.

Em meio ao luto coletivo da pandemia, viveu o seu luto particular também?

Sim. O fato de a gente não poder aglomerar... Por conta dessa configuração de vida, sempre tive mil famílias. No Natal, vou pra casa de um, de outro... Sou construída de um mosaico e senti a necessidade de construir o mosaico dela. Buscar esses pedacinhos dela que não são óbvios, é a mãe vista pela filha.

E também ela falando. Vamos ver o que ela quer falar, o que vai contar para a gente, o que vai emergir desses sete cadernos lotados ( leia no final dessa matéria um trecho de um dos diários ). Entender essa personagem através do que ela tem para dizer e que dialoga com as questões que a gente vive hoje. Se a gente pensar, na minha adolescência já era difícil ser feminista, imagina na dela! Hoje, é orgulho para quem é, né? Na minha adolescência, tínhamos que nos defender loucamente, porque vinha muita pedrada, não podia falar nisso.

Fico vendo o quanto da minha liberdade foi forjada pela minha mãe. Você tinha ao lado um dos maiores ícones de libertação feminina do país, com quem poderia ter aprendido tanto, mas foi privada dessa convivência. Como lida com isso?

É uma das coisas que mais irrita. Dá uma revolta com deuses, deusas, orixás. Que vacilo comigo! É atravessar a vida emputecida com o cosmos por ter tido tanto quase. De todo mundo ter tido o que era tão seu e te foi arrancado. É morrer na praia. Não tive essa mulher, esse ícone da libertação feminina, ao meu lado. Essa mulher explodiu no ar.

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Acha que tem um simbolismo no modo como ela morreu?

Tem, porque ela era uma explosão, viveu explosivamente e desapareceu numa explosão,  um avião onde as pessoas que estavam com ela no festival não embarcaram...

Ela adiantou a viagem porque estava com saudade de você...

Pois é... Olha isso... ( mostra o cartão enviado pela um dia antes da data de sua morte. Um trecho do texto, diz: "Janaina amada, estou na Austrália com muita saudade de você. Uma saudade legal. Hoje fui ver os cangurus e os coalas. Vi as mães com seus bebês, me lembrei muito de você e pensei que, daqui a dois anos, quero viajar com você e te ver correndo por um desses parques, toda colorida e coradinha... Amor, volto logo e acho que mais bonita e feliz. Beijos Leila, mamãe 'cangurua' ). Chegou pelo correio, da viagem que ela não voltou.

O cartão que Leila Diniz enviou da Austrália à filha, Janaina, chegou ao Brasil um dia antes da morte da atriz Foto: reprodução
O cartão que Leila Diniz enviou da Austrália à filha, Janaina, chegou ao Brasil um dia antes da morte da atriz Foto: reprodução
A imagem do postal que Leila Diniz contando sobre sua visita a um parque cheio de colas e cangurus Foto: reprodução
A imagem do postal que Leila Diniz contando sobre sua visita a um parque cheio de colas e cangurus Foto: reprodução

Em algum momento da sua vida, você se cobrou viver a liberdade que a Leila tinha?

Na infância e adolescência, me cobrei me diferenciar dela. Não queria parecer com uma pessoa que não estava aqui. Os psicólogos dizem que a criança entende como rejeição a morte do pai ou da mãe, mesmo não sendo escolha. Não tenho consciência ou lembrança de me sentir rejeitada, mas tenho memória de não querer parecer com ela, o que já é uma pista de que, talvez, eu tivesse tido essa rejeição não muito assumida. E tem a questão do Dia das Mães na escola...

Como se sentia nesse dia?

Ficava aflita antes de agendarem no calendário. Você fazia um bibelô e escrevia coisas para sua mãe. E quem não tinha mãe, que era o meu caso? Eu ficava pensando: "Para quem vai esse bendito presente?". Cada ano eu escolhia uma pessoa diferente para entregar. Tinha que ficar fazendo essa escolha toda vez e, aí, a sua ausência é grifada em negrito. Te obrigam a uma composição familiar que não é igual, o mundo é desigual. Querem sistematizar para quem se encaixa num padrão dessa estrutura patriarcal, ok, mas vamos ter empatia! Há muitas outras configurações.

Hoje, vejo na escola pessoas questionando o fato de não ter mais esse dia, queriam que o filho trouxesse o presentinho fabricado. E eu sou a mulher bomba do grupo de pais, que fala logo: "Não tem que ter porque olha como é". Hoje tem o dia da família, e aí é lindo porque pode ser qualquer um.

Li uma entrevista do seu pai em que ele dizia que você tinha a alegria, a vitalidade e a intensidade da Leila, mas que ela tinha pudor em parecer séria e responsável. Você, não.

Fui aceitando as semelhanças, como os questionamentos feministas, tive um momento na adolescência de compreender mais a mãe que tive, as aberturas dela, onde me reconhecia e correspondia, onde não. Se na minha adolescência era difícil ser feminista, imagina na dela. Tínhamos que nos defender loucamente, era muita pedrada.

Não me cobrei por ela nunca porque me cobrava pelo meu pai. No lugar sócio-político, no amadurecimento, no diálogo de poder falar sobre tudo. Minha irmã ( a atriz e produtora Dandara Guerra, também filha de Claudia Ohana ) nasceu quando eu tinha 11 anos. Então, fomos nós dois por um bom tempo.

Conversávamos muito, eu já me sentia muito adulta. Ele dizia: "Vem ver western comigo de madrugada". E eu: "Mas e a escola?". "Dane-se, falta aí", ela continuava. Queria conversar, estar junto. Meu pai, intelectual, tinha um combinado de casal moderno da época com a minha mãe, que foi professora e sempre gostou de criança pequena: "Você cuida até os 7 anos, e eu, daí em diante". Coitado. Ela não cumpriu o combinado...

Eu ficava meses sem ir na escola, repetia de ano... Tem uma coisa de maturidade diferente aí, de eu me cobrar isso. Até bater de frente com ele... Comecei a questioná-lo muito cedo. Aos 12 anos, enlouqueci meu pai com negócio de comunismo. Falei: "Me conta o que é isso porque eu tenho a impressão que sou isso aí".

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Nessa época você já estudava no Centro Educacional Anísio Teixeira (CEAT), então conhecido por reunir alunos ligados ao movimento estudantil e com bastante engajamento político?

Não, mas tinha que ir, né? ( risos ) Estava em outra escola, indo todo dia para a coordenação, assinando provas em branco, achando que o sistema educacional estava todo errado, como está de fato. Escrevia o que queria nas provas, questionava tudo. Tirava só zero, até que meu pai falou: "Não tem como você passar de ano. Vai parar por esse semestre, ano que vem vai para outra escola e, enquanto isso, vamos fazer um filme".

O que identifica de mais parecido com sua mãe em você?

Lutamos pelas mesmas pautas mas de formas diferentes. O que tem a ver com a época, mas mais com o temperamento. Uma coisa de personalidade que tenho parecido é que ela era muito transparente, falava tudo na lata. Por isso, se tornou porta-voz de tanta gente. Muitos queriam dizer o que ela dizia e não podiam, a sociedade não permitia. Tanto que foi criada a Lei da Censura Prévia, que apelidaram de Lei Leila Diniz, a partir da entrevista dela ao "Pasquim".

Sinto essa transparência dela em mim. E me controlo para não ser tanto. Tenho ataques de sinceridade e penso: "Menos, Janaína, não precisa falar isso para as pessoas". Tem uma coisa de ficar estampado o que você pensando, uma cara que mostra que não está de acordo com o que está acontecendo.

Por exemplo, estou ali na escola e vejo crianças pequenininhas sendo bombardeadas com inglês. Já faço aquela cara. "Ah é, globalização? Então, ensina mandarim. A língua do futuro". E Tupi Guarani, nossas matrizes? Sempre achei que deveria se ensinar na escola. Imagina o tanto de história que a gente poderia ouvir? Porque são tradições orais, não há livros escritos sobre as histórias indígenas. A gente poderia entender e se comunicar com a raiz de vários troncos.

Finalmente, sairíamos desse lugar de colonizados que reproduzimos na sociedade. Não adianta mudar descobrimento do Brasil por chegada dos portugueses no livro, tem que compreender a história que existia aqui. E essa história não está sendo contada às nossas crianças, infelizmente.

Sua mãe tinha uma relação forte com o mar e você se chama Janaína. Ela pediu à rainha do mar para engravidar?

Minha mãe pegava a flor que aparecesse no caminho e jogava para iemanjá. Assim ela pediu que tivesse filho e me deu o nome de Janaina. Eu fiz o mesmo pedido. Demorei muito a ser mãe. Queria criar as condições perfeitas, econômicas, profissionais e emocionais nunca chegariam, chegarão, jamais em tempos algum. Queria gabaritar a prova.

Buscou ser uma mãe perfeita justamente porque não teve mãe?

Totalmente. Por isso demorei muito a ser mãe. Pela ausência da minha mãe, fiquei idealizando a maternidade. Depois que o Heitor ( seu filho de 8 anos ) nasceu, entendi que ela é um exercício de descontrole. É lidar com o descontrole o tempo inteiro, porque tudo que você planeja sai diferente. Você precisa estar dentro do que você acredita, ser coerente, diante daquela situação descontrolada. Tive todas as mães do mundo e queria ser a mãe que eu considerava modelo. Fui construindo um gabarito da mãe que eu considerava exemplar e tirei zero na prova ( risos ). Aí, fiquei trocando pneu com carro andando.

Aagora estou nessa fase do "isso não é negociável". Explico que sou a juíza e ele, é o advogado. Então, vou ouvir os argumentos, ele vai ser escutado, mas eu que vou decidir. Tem vezes em que ele argumenta e eu concordo, tenho que ser democrática ( risos ).

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Você sofreu uma outra grande perda, o seu avô paterno, que morreu quando você tinha uns 10 anos, né?

Ele era o que eu tive de mais presente da minha mãe na vida. O mais próximo dessa sensação que tenho do era ela, da figura humana. Eu tinha liberdade total na casa dele, podia fazer o que quisesse, desde que não invadisse o espaço do outro. Ele era meu parceiraço. Tinha um sítio e, ao lado da enxada dele, ficava a minha, pequeninha. Tinha uma parte dele, a base, que era muito a minha mãe. E era como se eu ultrapassava ela e pegasse direto na fonte onde ela bebeu. E, assim, chegava um pouco nela.

Adivinha com quantos meses minha mãe se separou da mãe dela? Sete! Minha avó teve tuberculose e foi internada. Ficou em um sanatório e saiu de lá crente, vendo a luz. Meu avô se casou, e minha avó de criação criou minha mãe como se fosse mãe verdadeira. Minha mãe descobriu a verdade aos 15 anos e foi procurar a mãe de verdade. Aí houve uma ruptura.

O seu avô se matou. Acha que ele não aguentou a morte da filha?

Não aguentou tudo. Por que é isso, a gente está aqui até hoje tentando transformar o mundo. É duro ter essa ambição. Meu avô era bancário do Banco do Brasil, raiz, do Partido Comunista. Não gosto dessas datas... Até hoje não decorei, propositalmente, o dia do desastre do avião, nem de quando o meu avô se matou. Minha ligação com ele era tanta que, quando ele se matou, passei o dia chorando. Não sabia porquê. Meu pai perguntava o que estava acontecendo, e eu dizia "não sei". Ele achava que eu estava escondendo algo que não queria contar. Ninguém sabia ainda.

À noite, minha tia ligou dando a notícia, e meu pai optou por me contar só no dia seguinte para eu não dormir com aquilo na cabeça. Só que eu acordei saltitante, cantando pela casa. E meu pai esperando uma trégua para me contar. Lembro da frase até hoje: "Filha, vou ter que estragar sua alegria porque tenho que te contar uma coisa". Olhei para ele e disse: "Já sei, é o meu avô". Ele afirmou e eu não deixei ele me contar mais nada. Não soube por um bom tempo que ele tinha se matado. Ele perguntou se eu queria ir ( ao enterro ), e eu disse que queria guardar a memória dele vivo.

Não soube por um bom tempo que ele tinha se matado. Hoje é o inverso, tenho necessidade do rito. Porque tenho dois lutos muito fortes não ritualizados. Tenho necessidade de viver isso com qualquer pessoa que se vá, porque aí eu não dou brecha para a fantasia do parque de diversões, entendeu?

Precisa tornar aquilo concreto?

É, fechar o ciclo emocional. Um grande amigo do meu pai, o Ruy Polanah, grande ator moçambicano que viveu muitos pajés no cinema brasileiro, morreu. Ele dizia que era meu padrinho. Na missa de sétimo dia, a ex-mulher dele me entregou as cinzas, porque ela tinha sugerido fazer algo que eu disse não ter nada a ver com ele. Resultado, fiquei um ano com o Polanah na minha casa, vivendo um luto que eu acho que foram vários, porque, a cada luto, eu revivo os meus.

Cada um com seus mortos, né? E eu com essa minha coleção iniciada tão cedo... Foi a primeira vez que eu tive a coisa de: "Vou tomar uma decisão com relação ao fechamento desse ciclo aqui". Aquilo foi uma coisa muito séria para mim. Inventei que tinha que ir para um lugar que tivesse a ver, fazer uma viagem para São Tomé das Letras, porque ele gostava de extraterrestres. Só que não conseguia fazer essa viagem e cheguei à conclusão de que queria ficar com ele mesmo.

Porque é isso... Eu sou apegadinha aos mortos, meio que seguro o balão. Em uma das terapias que eu fiz, o analista me falou: "Você é necrófila". Eu respondi: "Oi? Não, eu tenho problema com a morte". E ele: "Necrófilo não é só ter relação sexual com cadáver, é se segurar neles. E você os segura na unha". No começo, pensei: "De jeito nenhum, está totalmente errado". Depois, falei: "Será?". Quando me vi com as cinzas do Polanah por um ano, pensei: "Tem toda razão, sou totalmente".

Em 2019, depois que Luana Piovani reclamou não poder postar de biquíni porque era cobrada a se posicionar politicamente, você gravou um áudio (que virou um texto viralizado), sobre o exercício da cidadania. Se colocou como uma "filha do biquíni", do ponto de vista de quem foi aquela "barriga icônica exposta" que escandalizou o país em plena ditadura…

É um clássico me perguntarem: "Você é aquela barriga?". Essa questão percorreu toda a minha vida. "Prazer, aquela barriga sou eu!". O que falo no áudio é: "Bora se posicionar". Era o começo desse antigoverno e senti necessidade de falar: "Galera, não tá dando trégua, não tem como falar de outro assunto que não seja esse, se posicionando". Quase peço licença para fazer outra coisa que não seja falar sobre o que está acontecendo. Pandemia, pandemônio. Acho uma loucura não falar repetidamente. Na verdade, qualquer coisa pode ser postada, depende do contexto, do que você está dizendo naquela ocasião. A bunda pode ser uma ruptura ou pode ser uma objetificação, o funk pode ser uma ruptura ou uma objetificação.

O áudio também foi num momento em que a Fernandona fez aquela foto de bruxa. Nossas bruxas sendo queimadas de novo, sempre? A coisa do feminino, exibir nosso corpo é lindo, o terrível é a gente ser obrigada a padronizar corpos e sermos identificadas como objeto. E pior é aceitar e compactuar com isso. Gravei esse áudio criticando as fotos de biquíni na atual conjuntura, quando há tantas coisas que urgem, mas aceitei a sua provocação de fazer a foto de biquíni... Vai ser a minha desmoralização completa ( risos )...

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E pensou sobre o que te levou a aceitar?

Tenho sempre pontos de mudança de perspectiva, essa foto talvez seja um deles. Penso de uma forma, defendo com veemência até me questionar, pensar o contrário e defender do mesmo modo. Mas, na real, tudo depende do contexto, do que você está dizendo naquela ocasião. A bunda pode ser uma ruptura ou pode ser uma objetificação. Geralmente, não me posto de biquíni. Aliás, quase peço licença para fazer outra coisa que não seja falar sobre o horror que está acontecendo na nossa sociedade.

Mas atendi ao seu pedido de releitura da foto na praia e pensei: "Por quê?". Porque acabo de fazer 50 anos e a mulher na nossa sociedade patriarcal não pode envelhecer. Ou existe um conceito de envelhecimento no qual o corpo quando envelhecido precisa ser escondido. Então, por que não?

Naquele momento da minha mãe, o biquíni estava simbolizando uma ruptura. Mulheres usavam aquele aventalzinho ridículo tampando um barrigão “intampável" para esconder o fruto do pecado. Não podiam transar com liberdade, tinham que casar virgens. A gravidez exposta no biquíni teve uma representação, simbolizou uma quebra desse dogma, como o topless, uma provocação sobre a obrigatoriedade de esconder os peitos femininos. Agora, precisamos romper outros padrões, exercitar nosso olhar de forma que a diversidade de corpos seja respeitada e aceita sem imposições.

Te pedem muito para usar a imagem da sua mãe?

Já me vieram com propostas milionárias para coisas como propaganda de carro que não tinham nada a ver. Por outro lado, já quiseram para propaganda de aniversário da pílula anticoncepcional, que foi uma pena não rolar, era bacanérrimo.

Pode ser difícil fazer projeções, mas como acha que Leila lidaria com o avanço do conservadorismo hoje?

Estamos voltando a cavalgadas de marcha ré. Acho que ela inventaria um jeito de gritar.

Você disse ter vontade de ligar para os adultos em torno dos filhos de Marilia Mendonça e de Paulo Gustavo. O que diria?

Posso fazer um guia? ( risos ). As pessoas fazem muito movimento para suprir a ausência e criam uma substituição quando a pessoa tem esse impacto para sociedade. Não me exigiram que eu substituísse minha mãe como figura pública, mas você ocupa um espaço no afeto dos outros maior do que o seu tamanho ali, como criança. Isso é a intenção de suprir essa ausência, mas o que isso faz é grifar para você: olha a ausência. Quanto mais existe o movimento de tapar esse buraco, mais aquilo está sendo sublinhado. É uma dicotomia de ausência e presença que você vive.

Vamos  falar de política. Você construiu uma vida na militância. Fundou grêmios estudantis, foi da Associação Municipal dos Estudantes Secundaristas e da Organização da Juventude Pela Liberdade. Em que acredita hoje?

A Organização Pela Liberdade era um racha do PCdo B. Éramos independentes, não queríamos ter partido, mas atuar organizadamente no movimento estudantil. Estudávamos muito os conceitos. Isso me formou. Essa coisa de não querer ter partido é um pouco o motivo do que deu no que deu, né? Passei por isso lá atrás, já migrei de posição.

Nem sei mais o que eu sou. Fui para as comunidades autônomas do Exército Zapatista, no México. Eles tinham a coisa de não saber quem eram e eu me identificava. Tinha uma frase do subcomandante: "O Zapatismo não é o anarquismo, não é o comunismo, é uma outra coisa que a gente vai descobrir fazendo". Eu queria ver o que era aquilo, fazer um documentário, mas não me deixaram. Aí, fiquei de voluntária, construindo casa, fabricando tijolo, circulando e aprendendo um monte, descobrindo que esse zapatismo é uma das coisas que me compõe. A gente não pode estar numa caixinha.

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Se antes você atuava, digamos, de uma maneira mais organizada, hoje, qual é o lugar da política na sua vida?

Como indivíduo sempre. Não deixo de me posicionar em nada, no micro e no macro.  Desde o que acontece ao meu lado, na esquina... É a coisa de não virar de costas e ser conivente com uma situação. Tomar ou não tomar atitudes políticas é se posicionar de qualquer maneira. Procuro estar dentro de coletivos de cinema, associações, contribuir nos espaços de organização dentro da minha área, que é a cultura. É onde posso atuar contra a destruição que está sendo promovida.

É indo pra frente da Ancine para não permitir que os 20 anos que foram construídos ali a partir a Retomada, depois daquele buraco negro que foi Collor, sejam destruídos. Porque veio esse mecanismo atual de destruição, que acontece através da burocracia interna, fazendo como que tudo que foi construído funcione ao contrário, sirva para paralisar o setor. Isso força o próprio setor a se posicionar contrário à instituição que deveria ser defendida. É perverso.

Acha que há saída?

A gente sempre renasce feito Fênix, a arte é indestrutível. Vimos agora na pandemia, as pessoas consumindo audiovisual mais do que nunca. Colocam a cultura numa posição como se tivesse que passar pires. Não! A cultura movimenta a economia brasileira mais do que a indústria automobilística, gera emprego.

Também acho que precisamos contar as nossas histórias. Felizmente, está existindo o debate antirracista e é preciso permitir que os protagonistas contem suas próprias histórias. Da mesma maneira o Brasil precisa contar histórias brasileiras. Para isso, precisamos ter espaço de tela. Não podemos ser considerados só mercado consumidor. Temos que nos ver refletidos e não só ficar vendo só histórias alheias.

É incrível seu pai continuar filmando aos 90 anos de idade...

Meu pai é uma força da natureza, muito animado e acho que isso dá longevidade. Antes da pandemia, a gente filmou ( "Aos pedaços", dirigido por Ruy e produzido por Janaína, que levou o prêmio de Melhor Direção no Festival de Gramado, mas ainda não tem previsão de lançamento ). Ele era o primeiro a chegar no set e o último a sair. Nossa jornada de trabalho é de 12 horas, seis dias por semana e só uma folga. Para quem acha que somos vagabundos...

E como ele está? Porque passou por problemas financeiros e de saúde (fez duas cirurgias na próstata, que paralisaram suas pernas por um período), durante a pandemia, né?

Agora, está bem. Meu pai tem uma coisa de se basear na genética boa. Ele veio a ter problema grave só na pandemia, aos 88, 89 anos. Passou a vida bem para caramba, mas comendo e dormindo mal. Diz que isso é que dá certo, que se fosse errado, ele não estaria aí. Eu digo que não, que não é por causa, mas apesar disso. Quando discutimos, ele me chama de médica charlatã ( risos ). Adoro medicina, dava muito para ser médica.

Leia abaixo texto de Leila Diniz que está em um de seus diários:

" A coisa mais engraçada por sua contradição é o que as pessoas que nos amam nos fazem de mal em nome do bem que nos querem.

É impressionante como nos fazemos isso.

O que me deixa mais perplexa é as pessoas não terem o direito de ter para si a sua forma de felicidade, obedecendo suas necessidades e vocações autênticas, a felicidade não poder ser diferente para cada um.

O ser humano é moldado num sistema que, por mais que saiba o quanto lhe faz mal, não consegue se libertar. E vai passando adiante, a outros seres humanos, que dele dependam, ou por ele se influenciem de alguma forma, os mesmos moldes em que foi moldado (e que tanto odeia!).

E assim vamos passando, uns para os outros, a nossa doença, o nosso verme ".