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Cultura

Jards Macalé: 'Quando estava nos piores momentos, continuei a produzir, para me manter vivo'

Sucesso no streaming e tema de acalentada biografia, artista chega aos 77 anos recebendo homenagens e com três discos a serem lançados, um só de inéditas
O cantor e compositor Jards Macalé Foto: José de Holanda / Divulgação
O cantor e compositor Jards Macalé Foto: José de Holanda / Divulgação

RIO - Não tem muito tempo, Jards Macalé descobriu que “Soluços”, música de seu primeiro compacto, de 1970, conta com quase dois milhões de streams no Spotify. Está certo que a gravação entrou na trilha da novela “Amor de mãe”, mas não deixa de ser um feito e tanto para o artista que sofreu como poucos com a pecha de maldito em boa parte do seu mais de meio século de carreira.

— Fiz “Soluços” com 15 anos de idade, eu estava naquela fase em que, como dizia Nelson Rodrigues, você não sabe nem cumprimentar uma mulher! — ironiza o cantor, compositor, violonista, arranjador e ator que acaba de ter os seus 77 anos de vida esquadrinhados no livro “Eu só faço o que quero”, de Fred Coelho.  — Descobri que sou mais ouvido em Portugal, nos Estados Unidos e na Rússia. Agora eu quero ser ouvido na China! Não sei onde é que está esse dinheiro ( de direitos autorais do streaming ), mas eu sou seguido por 33 milhões de pessoas no planeta. É mais do que um país inteiro! Agora estou esperando que Frank Sinatra me telefone.

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Fiel à máxima de que “todo ser humano acaba criando a sua lenda, mesmo que não queira”, o artista ainda sim diz achar estranho que a sua “humilde figura de Don Quixote de La Mancha, quando muito Sancho Pança” tenha rendido um volume com mais de 500 páginas. Ao ler o livro, Jards Anet da Silva emocionou-se e riu, ainda mais nas vezes em que se viu confrontado com aquele tal de Jards Macalé, um personagem “anárquico entre aspas, que vai na emoção direta”:

— Eu tinha clareza do que estava fazendo, mas não do que estava acontecendo e de quais seriam as consequências. Só agora estou tomando consciência desse personagem.

Detalhe da capa do livro "Jards Macalé - eu só faço o que quero", de Fred Coelho Foto: Reprodução
Detalhe da capa do livro "Jards Macalé - eu só faço o que quero", de Fred Coelho Foto: Reprodução

Preparado para encontrar um biografado com uma fama de gauche que o precede, Fred Coelho teve surpresas logo que começou o trabalho:

— O Jards é um cara pontual e organizado, que tem um arquivo incrível. Ele sempre teve noção do lugar que ocupa na história da sua geração e da cultura brasileira.

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Amigo, produtor e parceiro no grupo Dobrando a Carioca, o cantor e compositor Moacyr Luz também foi enganado pela imagem maldita de Macalé:

— Eu marcava oito e meia no aeroporto, ele chegava oito e vinte e ficava tirando onda de que era o mais pontual do grupo.

Altos e baixos

O livro acompanha as desventuras do carioca nascido na Tijuca, que passou a adolescência nas areias de Ipanema (onde herdou o apelido de Macalé daquele que era considerado um dos piores jogadores de futebol de sua época) e que cedo se viu no meio do turbilhão de renovação musical pós-bossa nova.

Aplicado estudante de música na Pró Arte, Jards acabou se misturando a turma dos baianos Caetano, Gil, Bethânia e Gal que desembarcava no Rio para o sucesso. Descolou-se deles na Tropicália e foi sensação em 1969, no Festival Internacional da Canção, com a performática “Gotham City” (“Cuidado! Há um morcego na porta principal!”).

— “Gotham City”, agora eu posso dizer, foi um desagravo meu e do ( poeta e letrista José Carlos ) Capinam à prisão de Caetano e Gil ( pela ditadura militar ) — conta Macalé que, antes de encontrar Caetano Veloso no exílio londrino e ajudá-lo nas gravações do Lp “Transa” (1972) , foi gravado por Gal Costa (“Vapor barato”) e que, junto com a cantora, Capinam e Paulinho da Viola, fundou uma firma de empresariamento de artistas chamada Tropicart. — Havia a ideia bizarra que íamos salvar os restos da Tropicália na voz da Gal. Claro que fomos à falência!

Jards Macalé canta "Gotham City", música dele e de Capinam no Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho, em 1969 Foto: Arquivo / Agência O Globo
Jards Macalé canta "Gotham City", música dele e de Capinam no Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho, em 1969 Foto: Arquivo / Agência O Globo

Nos anos 1970, apesar da ditadura, Macalé fez, de fato o que quis. Como artista solo, gravou três LPs ousados e sofisticados, que conjugavam tradição e modernidade sem a preocupação de fixar-se a rótulos: “Jards Macalé” (1972), “Aprender a nadar” (1974, que ele lançou numa performance na barca Rio-Niterói ao fim da qual jogou-se na baía de Guanabara) e “Contrastes” (1977). No entanto, as dificuldades em lidar com as exigências de gravadoras, rádios e contratantes de shows o levaram a um longo período de escassez de espetáculos e discos de canções inéditas (“Let’s play that”, que ele gravou em 1980 acabou saindo apenas 14 anos depois). E a duas tentativas de suicídio.

— Em 1985 eu saí do ar — admite ele, seco. — Mas nunca parei de trabalhar, nunca parei de produzir. Quando eu estava nos piores momentos, continuei a produzir. Sem perspectiva, sem pensar em mercado, mas por compulsão, para me manter vivo. Ser um artista maldito, que era uma honra, acabou virando mesmo uma maldição. Algum tempo depois, eu fui ler no dicionário o verbete de “maldito” e me apavorei, é horrível. Quer saber? Maldito é a p.q.p.! E aí comecei a combater o maldito nesse sentido. Garrincha, Villa-Lobos, o próprio Tom Jobim, todos foram amaldiçoados. Quando João Gilberto morreu , alguém disse “oh!”?

Novos tempos

Mas em 2021 as coisas são bem diferentes para Jards Macalé. Ele tem três discos para sair: um só com canções de Zé Kéti, gravado em Nova York com o trio do pandeirista Sergio Krakowski; um de inéditas em parceria com o pianista João Donato (que grava em janeiro pelo selo Rocinante) e um de instrumentais, a ser feito para a gravadora Atração.

E homenagens lhe não faltam, como o recente disco “Quero viver sem grilo – uma viagem a Jards Macalé”, da cantora Emanuelle Araújo, e a indicação ao Grammy Latino por “Besta fera” (2019) , álbum que gravou, depois de passar por sérios problemas de saúde , com Kiko Dinucci, Tim Bernardes, Juçara Marçal, Rodrigo Campos e outras feras da música dos anos 2010 de São Paulo .

— É um dos maiores ícones de coragem e arte profunda e transgressora. A inquietude e irreverência da sua música sempre foram inspiração — diz Emanuelle.

Falando em gerações (ou melhor, degenerações , como ele prefere chamar), Macalé vê a sua como uma que “se cristalizou, bolou fórmulas, ganhou algum dinheiro e não quer mais sair da poltrona para não se incomodar”.

— Já essa nova degeneração é inquieta, eles querem saber o que aconteceu, o que está acontecendo, e querem fazer alguma coisa para acontecer. Eles são bons, não à toa que botaram a Elza (Soares) lá no espaço sideral (com o disco “A mulher do fim do mundo”, de 2015).

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Presente tanto no disco de Elza quanto no de Macalé, Dinucci considera o mestre carioca “o grande herdeiro de João Gilberto”:

— Enxergo o Jards como a sua continuação, na interpretação e na invenção. O próprio João adorava vê-lo tocar. A primeira coisa que me vem à cabeça sobre ele é originalidade e pluralidade, uma facilidade para percorrer vários mundos — observa. — É um camaleão que vai se adaptando por onde passa, mas não de uma maneira passiva. É sempre transformando, sacudindo, desafinando o coro dos contentes.

"Jards Macalé – Eu só faço o que eu quero"

Autor: Fred Coelho. Editora: Numa. Páginas: 500. Preço: R$ 70