Cultura

João Donato, um jovem aos 80 anos

Músico festeja com CD, filme e exposição

O pianista Joao Donato na Urca, bairro onde mora: “A música é a coisa mais perto do céu que existe’’
Foto:
Fabio Seixo
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Agência O Globo
O pianista Joao Donato na Urca, bairro onde mora: “A música é a coisa mais perto do céu que existe’’ Foto: Fabio Seixo / Agência O Globo

João Donato sorri e seu rosto se ilumina como uma grande lua cheia, a bochecha lisa como um bumbum de neném. Tudo ali parece de neném. Os olhos pequenos, os dentes pequenos, o cabelo ralo tingido de um vermelho clarinho. Há ainda o boné na cabeça, a camisa colorida (trabalho do grafiteiro Toz), a calça folgada, o chinelo de dedo e a fala silabada, como a de um menino em busca de palavras desconhecidas. É possível — mas não certo — que em algum lugar da casa ele esconda objetos como carrinhos, bonecos de super-heróis, bolas coloridas e chocalhos de plástico. Ele é uma espécie de Benjamim Button, o personagem criado por Scott Fitzgerald que nascia velho e rejuvenescia à medida que o tempo passava. Perto de fazer 80 anos, João Donato — que perambulou por Nova York ao lado de João Gilberto, tocou com Tom (Jobim), morou no andar abaixo de Tim (Maia), namorou Dolores (Duran), fez show em puteiros de Los Angeles e experimentou coisas do arco da velha — é como uma criança novinha em folha, ávida para encarar o mundo.

No momento em que abre seu sorriso de bebê, Donato está espichado numa poltrona preta reclinável, comprada por US$ 200 em Nova York e que balança como uma gangorra de parquinho a cada movimento que ele faz. Donato adora o balanço. O sobe e desce da cadeira (que é forrada com uma camisa comemorativa do Grammy de Jazz Latino de 2010, faturado por ele com o disco “Sambolero”) é acompanhado de um nhénhénhém agudo que sai das engrenagens sem óleo e ganha o ambiente. Donato diz que aquele som — como muitas outras coisas que atravessam suas orelhas — é música para o seu ouvido. O barulho da chuva é música, a onda no mar é música, o bate bola dos moleques lá fora é música, o latido do cachorro é música, a bananeira no vento também é música. Para João Donato tudo é música.

— Eu me lembro da primeira vez que percebi algo como uma música, era o canto de um pássaro, e é um som que, de um jeito ou de outro, está até hoje em tudo o que eu faço — diz Donato, que, mais tarde, transformou o canto do pássaro em “Lugar comum”, uma de suas músicas de maior sucesso. — Algumas músicas que ouvia naquela época numa vitrola de dar corda, como “Tristeza de amor”, de Fritz Kreisler, também estão até hoje na minha cabeça. Era como se eu sentisse uma saudade, uma nostalgia de algo que eu ainda nem conhecia. A coisa mais perto do céu que existe é a música.


João Donato, de marinheiro, aos 3 anos, ainda no Acre
Foto: Divulgação / Álbum de família
João Donato, de marinheiro, aos 3 anos, ainda no Acre Foto: Divulgação / Álbum de família

O céu de Donato era o Acre, onde nasceu em 1934. Aos 5 anos, ganhou seu primeiro instrumento de verdade (um acordeão) e logo depois já se comportava como um veterano dos palcos. Aos 8 anos, compôs a primeira música e, aos 12 — depois que a família veio para o Rio de Janeiro acompanhando o pai militar —, resolveu viver sua primeira aventura musical: inscreveu-se no programa de Ary Barroso na Rádio Cruzeiro do Sul. Chegou com tudo em cima: paletó vincado, gravatinha, sapato de verniz e glostora no cabelo. Donato tinha um pouco mais de um metro e meio de altura, mas achava que já era gente grande. O compositor de “Aquarela do Brasil” pensava diferente. Ele checou a idade do calouro na ficha de inscrição e mandou riscar seu nome do programa antes mesmo da apresentação. Ary não gostava de meninos-prodígios. Dizia — como se previsse o futuro às avessas, de trás pra frente, que seria vivido pelo candidato — que eram crianças velhas.

— Foi uma decepção, mas aquilo não me desanimou. Logo depois consegui emprego no rádio, tocava sanfona no programa “Manhas da roça”, do paraibano Zé do Norte, acompanhava grupos de baião e acabei descobrindo o jazz — conta Donato, que, aos 22 anos, gravou “Chá dançante”, seu primeiro disco, produzido por ninguém menos que Tom Jobim. — Na capa estava escrito “Donato e seu conjunto”. Porra, o tal conjunto era formado por Tom Jobim, Paulo Moura e Altamiro Carrilho, só fera, um timaço, e eles nem figuraram nos créditos. Isso é que é antimarketing.


O pianista na sala de casa: “Eu não sou só Rio de Janeiro, nem só Acre’’
Foto: Agência O GLOBO / Fabio Seixo
O pianista na sala de casa: “Eu não sou só Rio de Janeiro, nem só Acre’’ Foto: Agência O GLOBO / Fabio Seixo

A cadeira em que João está esparramado fica numa sala espaçosa no segundo andar da casa onde mora, na Urca. Por todos os lados estão marcas de suas histórias, de suas viagens, de suas influências. As paredes do lugar estão cobertas de capas de discos, reproduções de reportagens de jornais e prêmios. Há também vários sapinhos de cerâmica, numa referência óbvia à “Rã”, uma de suas músicas mais famosas. E bonecas russas, instrumentos musicais e centenas de CDs. Na janela, tremula a bandeira verde, amarela e vermelha do Acre. No meio do cômodo, junto à sacada que dá vista para a Baía de Guanabara, há um piano. Foi o piano que o levou à bossa nova. Ou quase isso.

— Eu não sou bossa nova, eu não sou samba, eu não sou jazz, eu não sou rumba, eu não sou forró. Na verdade eu sou isso tudo ao mesmo tempo — diz Donato, que lembra rindo da vez em que foi acompanhar João Gilberto numa série de shows em um luxuoso hotel de uma estância hidromineral mineira. — João tinha acabado de lançar o “Chega de saudade” e seu estilo de cantar baixinho, a batida do violão, ainda não eram exatamente populares. Depois da primeira noite, o gerente da casa nos procurou, nos deu um abraço e disse que, dali pra frente, ficaríamos a temporada inteira como hóspedes do hotel, com tudo pago, casa, comida e roupa lavada… Desde que não tocássemos mais.

BOSSA NOVA

A aproximação com o povo da bossa nova chegara através dos fãs-clubes Frank Sinatra-Dick Farney e Lúcio Alves-Dick Haymes. Donato zanzava entre os dois, sem ligar para a rivalidade. Queria fazer contatos. Circulou e tocou em boates famosas de Copacabana, como a Drink, a Plaza e a Monte Carlo. Em 1959, o violonista Nanai o chamou para uma turnê nos Estados Unidos, juntando-se ao grupo formado com o que restara do Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda. Fez temporada de quatro semanas em Lake Tahoe, Nevada, tocando em cassinos, enquanto o povo se divertia com as roletas e a mesa de carteado.

Quando o grupo foi embora, já em Los Angeles, ficou sozinho, sem dinheiro e quase dormiu na rua, depois que a dona da pensão onde morava jogou suas malas na calçada. Chegou a tocar numa boate com o sugestivo nome de Loosers. Tocou onde lhe davam um troco. Foi resgatado da sarjeta pelo baterista cubano Armando Peraza, que já conhecia seu som. Com ele, se juntou aos vários grupos de músicos latinos que mandavam na área, os chefões Johnny Martinez e Mongo Santamaria à frente. Aprendeu a ganhar dinheiro na noite. Começou a criar nome:

— No início eu dizia que não sabia tocar aquele jazz latino, que meu negócio era outro. Eles diziam que bastava que eu soubesse tocar, o resto era com eles. E foi assim mesmo. Tocava quase todas as noites, passava de uma orquestra para outra. Minha vida mudou ali.

Em 1962, Donato — com alguns dólares no bolso — voltou ao Brasil, onde gravou “Muito à vontade”, disco em que misturava suas várias influências. Uma porrada. Tinha samba, bossa nova e balanço latino. Com a bolacha embaixo do braço, retornou aos Estados Unidos, bateu na porta da Pacific Jazz e disse que tinha um troço pra mostrar. Foi o saxofonista Bud Shank, artista contratado da casa, depois de ouvir uma meia dúzia de músicas, quem deu o aval. O disco para o mercado americano saiu com o nome de “Sambou, sambou”.

— O cara é um monstro — teria dito Shank. — Ele toca o futuro.

Dali em diante, o futuro de Donato começou a tomar forma. Ele tocou com gente como Chet Baker, Sérgio Mendes, Rosinha de Valença e Tito Puente. Rodou por Los Angeles, Nova York, Roma e boa parte do mundo que se interessava pelo seu som cheio de um gingado que quebrava os quadris das meninas e de umas harmonias malucas que, na boa, pareciam não caber nas partituras. Gravou uma dúzia de discos.


Donato e Gal Costa nos anos 70
Foto: Divulgação / Arquivo de família
Donato e Gal Costa nos anos 70 Foto: Divulgação / Arquivo de família

Quando voltou ao Brasil, em 1972, Donato tinha quase 40 anos, uma calvície que parecia querer dividir sua cabeleira ao meio, e ainda era uma novidade para a maioria das pessoas. O país, que acabava de descobrir a Tropicália, era um campo fértil para as experimentações. Donato era uma onda nova, um vapor barato, mais ou menos como o cabelo black power acaju que o Paulo César Caju andava usando pra jogar no Flamengo, a voz aguda de Gal Costa no show do Tereza Rachel, a calça boca de sino, o som novo que os meninos do Clube da Esquina faziam em Belo Horizonte, a pipoca amanteigada que começava a ser vendida na Sears ou as ondas perfeitas que os surfistas parafinados haviam descoberto no Píer de Ipanema.

— Donato é um filtro extraordinário para o espírito brasileiro. É das florestas, dos rios, das montanhas, das gentes, e adapta isso tudo à dimensão urbana e cosmopolita do Rio de Janeiro, desembocadouro de tendências universais — diz Gilberto Gil, parceiro no sucesso “Bananeira” e na belíssima “A paz”. — Ele possui um enorme poder de concisão, faz tudo parecer simples. É um mago.

Na volta ao Brasil, Donato se juntou aos meninos da pós-bossa nova e aos tropicalistas. Compôs com Gilberto Gil e Marcos Valle, produziu Gal Costa e Nana Caymmi. Enlouqueceu com os ecos de Eumir Deodato, que trazia dos Estados Unidos. Batucou com Jorge Ben. Frequentou escolas de samba, terreiros de macumba e buracos quentes por todo o país. Viveu entre Rio, Los Angeles, Europa e Japão. Lançou discos fundamentais como “Quem é quem” e “Lugar comum”. Viveu intensamente a época das viagens e do desbunde. Casou, namorou, casou, namorou. Desapareceu algum tempo. Ressurgiu anos depois pelas vias do Oriente. Passou por Roma, Tóquio e Brasília. Morou na Barra da Tijuca, um andar abaixo de Tim Maia.


Donato e João Gilberto no Centro do Rio
Foto: Divulgação / Arquivo de família
Donato e João Gilberto no Centro do Rio Foto: Divulgação / Arquivo de família

— Quando eu chegava na portaria do prédio já dava pra escutar a sonzeira que saía do apartamento do Tim, 24 horas por dia. Ele me chamava para subir e, quando eu chegava lá, dizia: “Donatinho, hoje tem de tudo. Coca, maconha, uísque, dólar, perfume e mulher. Você escolhe” — conta Donato, garantindo que Tim não era o síndico do prédio. — No meio da noite ele falava: “Vamos encher o saco do João Gilberto?” E então Tim ligava pro João só pra dizer, com aquele vozeirão: “João, ô João, você tá cantando ‘Corcovado’ toda errada. É um tom acima, João, um tom acima”.

PARCEIROS

A volta ao Brasil e à vida no seu país de origem deram chance também para que Donato conhecesse novos parceiros, como Cazuza (em “Doralinda”), Martinho da Vila (em “Daquele amor nem me fale”), Paulo André Barata (“Nasci para bailar”) e Joyce Moreno (em “Prossiga”). Ia do rock ao samba passando pelos nomes de enciclopédia da MPB, como Chico, Caetano e Djavan. Jogava nas 11. Em 2001 e 2002, lança “Ê- lala lay-ê” e “Mangaborra”, com participações de gente como Marcelo D2 e Marisa Monte. Rejuvenesce cada vez mais. Continua, até hoje, recebendo convites para apresentações em todas as partes do mundo, a maior parte deles feito por gente com idade para ser seu bisneto.

— Eu o conheci na década de 1980, quando ele estava casado com a Wanda Sá, mas era fã dele desde que era pequena — conta Joyce, que já há alguns anos faz shows com Donato no mundo inteiro. — Ele tem o estilo dele, um suingue muito próprio. Você ouve e sabe que é ele rapidinho. Donato tem um lado lúdico que aparece em tudo que faz. É uma criança grande.

A criança grande chega aos 80 anos cheio de planos. Flerta com Debussy e Ravel, duas de suas grandes influências. Acabou de compôr uma “Suíte sinfônica popular’’, que será apresentada na Cidade das Artes, em janeiro de 2015. Está com um CD duplo (“O Couro tá comendo” e “O bicho tá pegando”) gravado e prontinho para ser lançado. Um documentário, dirigido por Tetê Moraes (com imagens históricas de suas apresentações em Havana), está finalizado para ser exibido no Canal Brasil. Uma biografia, escrita pelo jornalista Antônio Carlos Miguel, será lançada pelo Sesc no ano que vem. Não é só.


O pianista com Tom Jobim, em Nova York, em 1964
Foto: Divulgação / Álbum de família
O pianista com Tom Jobim, em Nova York, em 1964 Foto: Divulgação / Álbum de família

Há também uma caixa com as gravações feitas entre os anos 1970 e o final dos anos 1980, com pelo menos três discos só de inéditas, organizada por Marcelo Fróes. E uma exposição sensorial, assinada pelos artistas Ana Durães e Cláudio Fernandes, a ser inaugurada em agosto, em Brasília. No meio disso tudo, Donato segue com uma agenda lotada com shows em Paris, Nova York, Moscou e Madureira. Uma cabeça que ferve e apita como uma panela de pressão. Um pé sempre fincado em suas raízes.

— Eu sempre carreguei minha terra no bolso, não importa onde eu estivesse — diz.


João Donato toca piano na Praia Vermelha
Foto: Fabio Seixo / Agência O Globo
João Donato toca piano na Praia Vermelha Foto: Fabio Seixo / Agência O Globo

João agora posa para a foto de capa da Revista O GLOBO na Praia Vermelha, na Urca. É uma tarde de Copa do Mundo, o lugar está repleto de turistas que saem do Pão de Açúcar e aproveitam a chance para fazer seus próprios registros do compositor ao piano. João descalça as sandálias e coloca os pés na areia. A simples visão do mar, na boca da Baía de Guanabara que um dia enganou navegadores com sua aparência de rio caudaloso, é capaz de mexer com sua memória, atirando-o imediatamente para os dias de sua infância:

— Eu não sou só Rio de Janeiro nem só Acre. Eu sou de todos os rios, eu sou um homem dos igarapés. Eu sempre volto ao lugar de onde saí.

João Donato — um homem de 80 anos com 1,80m de altura, uma esposa com 35 anos a menos que ele, um show antológico no último Rock in Rio, um desfile emocionante com a Vila Isabel no último carnaval, uma mania de varar as madrugadas compondo e se divertindo, um apetite sexual de adolescente cheio de espinhas e um passado que teima em se misturar com o futuro — está definitivamente de volta ao berço.