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Cultura

João Moreira Salles: 'O cinema do Coutinho nos dava razões para gostar do Brasil'

Cineasta relembra o amigo e reflete sobre a obra do documentarista, tema de exposição que ocupa cinco salas do IMS Rio
Eduardo Coutinho em foto que está na Ocupação que leva seu nome, no IMS Foto: Divulgação/Andrea Nestrea
Eduardo Coutinho em foto que está na Ocupação que leva seu nome, no IMS Foto: Divulgação/Andrea Nestrea

RIO — "Com exceção dos casos patológicos, não somos tão diferentes assim. Amamos, sofremos, temos medo da morte. Quase toda conversa é possível", diz o cineasta João Moreira Salles, provocado a pensar sobre o que se pode aprender com os filmes de Eduardo Coutinho neste momento de encontros tão escassos e diálogos tão difíceis.

O diretor de “Cabra marcado para morrer” (1984), “Santo Forte” (1999) e “Edifício Master” (2002) fez de seu cinema um exercício da escuta. Dizia que o som mais bonito era a voz humana. E em seus filmes cabiam muitas, que estão agora em cinco salas do Instituto Moreira Salles (IMS Rio), na Gávea, onde acontece a “Ocupação Eduardo Coutinho” , a maior exposição já dedicada ao maior documentarista do país, assassinado em 2014 , pelo filho, num surto de esquizofrenia.

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Estão lá documentos, itens curiosos, trechos de seus filmes — incluindo obras de ficção pouco conhecidas —, a passagem pelo “Globo Repórter”, suas incursões como ator. E também os pitorescos e inseparáveis caderninhos espiralados em que descarregava impressões sobre os personagens de seus filmes, as entrevistas em que falou de seu cinema, as dedicatórias fake que escrevia nos livros dados a amigos.

João era um deles. Uma das pessoas mais próximas de Coutinho, produtor de seus filmes e interlocutor frequente, ele concedeu a seguinte entrevista, por e-mail, dias antes da explosão da crise de seu Botafogo . Nela, reflete sobre a obra do amigo e a mostra, idealizada pelo Itaú Cultural e com curadoria do crítico e pesquisador Carlos Alberto Mattos.

Que tipo de cinema acha que interessaria ao Coutinho hoje? E o que ele não faria de jeito algum? O Brasil de hoje o levaria de volta aos temas políticos ou o afastaria ainda mais?

Sou da tese de que a obra do Coutinho é essencialmente experimental, na medida em que testa os limites do gênero. Por essa razão sempre foi muito difícil antecipar o próximo movimento dele. Mas uma coisa eu sei. Consuelo Lins — crítica, documentarista e grande amiga dele — escreveu que o cinema do Coutinho nos dava razões para gostar do Brasil. Não tenho dúvida de que essa observação continuaria valendo. Isso pode soar ingênuo diante da situação em que nos encontramos.

O que significa gostar do Brasil — deste país, particularmente nesta quadra triste e regressiva da nossa História? Não tenho uma boa resposta. Sei apenas que saio de um filme do Coutinho com razões para não me desesperar do Brasil. As pessoas que ele filmou continuam por aí, são legião. Ao menos no um-a-um, que é como ele as registrava, essas personagens mostram reservas comoventes de coragem, perseverança, fragilidade e afeto. (Coletivamente, já não sei.)

Você é uma das pessoas que mais conheciam o processo de trabalho dele. Como isso aparece na Ocupação?

João Moreira Salles: 'Sou da tese de que a obra do Coutinho é essencialmente experimental' Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
João Moreira Salles: 'Sou da tese de que a obra do Coutinho é essencialmente experimental' Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

De maneira bastante explícita. A curadoria excepcional do Carlos Alberto Mattos e da equipe do Itaú Cultural isola os vários elementos daquilo que a gente poderia chamar de método do Coutinho, um conceito que só é prudente usar agora que ele não está mais aqui — embora fosse essencialmente um criador de sistemas, Coutinho odiava toda tentativa de reduzi-lo a esquemas rígidos.

Além dos documentos de filmagem, rascunhos de projetos, registros de seleção de personagens e cadernos de anotações, um conjunto valiosíssimo de materiais que o público verá pela primeira vez, a exposição também cataloga a maneira como certos temas centrais da obra dele — religião, música e silêncio, para citar só alguns — atravessam essa produção ao longo de décadas.

O que se pode descobrir sobre o cinema dele na exposição que já não está nos filmes?

A relação entre os filmes. Para mim, essa relação é o que constitui a natureza de uma obra, que eu compreendo não como a mera soma de todos os filmes mas como uma ideia de cinema que vai sendo construída e testada no correr dos títulos. O lugar de chegada não é mais o lugar de partida. Entre um ponto e outro uma coisa nova é inventada. A obra é essa invenção.

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A exposição apresenta também aspectos pouco conhecidos da trajetória dele, como ter dirigido uma versão teatral de “Pluft” em Paris e os primeiros filmes que ele fez. O que essa produção inicial traz de singular?

O humor, o domínio da técnica e, sobretudo, o interesse dele desde sempre pela arte de representar.

Tímido, inábil nas questões práticas da vida, cinéfilo desde cedo, apaixonado por teatro... Como essas características transformaram Coutinho no cineasta que ele se tornou?

No filme do Carlos Nader, “Eduardo Coutinho, 7 de outubro”, tem uma hora em que o Coutinho diz: “Nisso eu sou bom”. Ele se referia à capacidade de se conectar com as pessoas que filmava, em fazer com que confiassem nele. Na filmagem, essa timidez e inabilidade para a vida a que você se refere desapareciam e davam lugar ao avesso disso. No set ele não era caipora, ali ele tinha potência. Filmar, portanto, não era apenas uma profissão. Era onde a vida existia a pleno. Por isso aquelas conversas eram tão necessárias e desejadas. Os personagens percebiam e se sentiam reconhecidos. Logo, davam o melhor de si.

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Se fosse montar um roteiro da exposição, o que você citaria como imperdível? Há algo que mesmo você só tenha descoberto recentemente?

As entrevistas. De uns tempos para cá tenho pensado que elas também são parte da obra. Hoje eu as considero tão estupendas quanto os filmes. A exposição traz uma seleção das melhores entrevistas gravadas que ele já deu. Sob vários aspectos, a precisão das ideias e a clareza com que ele fala sobre o seu modo de fazer as coisas são impressionantes. Um objeto de beleza.

Na época do lançamento de “Últimas conversas” (derradeiro filme de Coutinho, finalizado por João e pela montadora Jordana Berg em 2015), você disse ao GLOBO que havia um material extenso dele durante filmagens, e que estava falando com Jordana para, quem sabe, aproveitar isso. A que conclusão chegaram? Há mais sobre Coutinho a caminho?

Na conversa virtual que abriu a “Ocupação” no Rio (disponível no site do IMS), Jordana disse que está debruçada sobre esse material. Torço para que nasça um filme desse trabalho. Pouca gente conheceu tão bem o Coutinho e foi tão amiga dele. Talvez ninguém saiba tanto sobre o processo de criação dele, de cujo desenvolvimento ela foi testemunha e parceira. Difícil imaginar muitos retratos feitos por alguém com uma perspectiva tão privilegiada quanto a dela. É um filme a que eu gostaria muito de assistir.