Joaquim Ferreira dos Santos
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Joaquim Ferreira dos Santos

Tudo que for notícia - mas escrita de outro jeito, como se não fosse.

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Joaquim Ferreira dos Santos

Nasceu no Rio e é jornalista há 50 anos, tendo trabalhado nos principais veículos do país. Publicou dez livros, entre eles a biografia de Leila Diniz.

Por Joaquim Ferreira dos Santos


Quem tem me ligado muito é a Bia. Todo dia ela faz tudo lamentavelmente igual e, ali pelas 15, 16 horas, o celular toca. Pelos números na tela, eu já sei. É minha anti-musa, a bela da tarde insaciável que mais uma vez vem me apoquentar a paz de espírito.

“Olá. Eu sou a Bia, a sua secretária digital do Bradesco.”

Bia e eu já nos desconhecemos há tempos. Já era hora de ela abandonar essas formalidades de ficar se apresentando como se eu não identificasse, à primeira vogal, o hálito de sua voz mecânica. Porém, e ai como me dói fazer esse porém, eu banco o fino. Respondo normal, com outro “olá”, mesmo sabendo que Bia não ouve, e logo vai engatar na conversinha de sempre. Parece que Bia quer pegar minha grana.

Sou um desses homens que aparecem às terças-feiras nas crônicas do Leo Aversa, um indivíduo em cotidiano esforço de desconstrução. Sei bem o que eu e meus pares fizemos nos verões passados do machismo. Tento novos hábitos. Para não incorrer no manterrupting, fico em silêncio obsequioso para ouvir o que Bia tem a dizer. Sei que mais uma vez ela reaparecerá em meus ouvidos com o mesmo papo de cerca-lourenço. Não pisco contrariedade. Em busca do atestado da absolvição dos pecados antigos, eu me faço pacientemente silencioso. Olá, Bia, sou todo ouvidos.

“Esta mensagem é para informar que foi realizada com sucesso a sua transferência PIX de R$ 1200 para José Carlos da Silva, do Banco Santander”.

É Natal, a data máxima da cristandade. Nesses dias de dezembro o desejo de fazer o bem ao próximo corre no plasma subitamente generoso de todos nós. Do fundo do coração, gostaria de depositar os mil e duzentos na conta do José Carlos da Silva. Pelo número de vezes que a Bia me ligou com essa informação, acho que não foi só um Zé Carlos, mas todos os seus homônimos já foram agraciados com meu PIX. Seria honroso. É nome simples, identifica esses brasileirinhos que, com a honestidade de seu suor, constroem o país. Merecem mais que um PIX de Natal. No entanto, desconheço qualquer Zé Carlos da Silva.

“Se você não reconhece essa transação”, finaliza Bia, “aguarde na linha”.

Todo dia eu também faço tudo igual. Aguardo obediente na linha, esperando que Bia apareça para finalmente detalhar o golpe em que revelará toda a audaciosa desfaçatez de sua cilada. Quero saber com qual artimanha vil me tirará as letras do Tesouro, as debentures, as criptomoedas e tudo mais que ela pensa estar forrando o porquinho. Bia, no entanto, pode ser o que for – e tenho amigos que também já foram assediados pelo seu anúncio do PIX falso –, mas ela é craque em se fazer misteriosa.

Quando me preparo para ouvir seus ardis perversos, seus pedidos maliciosos de senha, de entrega dos codinomes que uso para abrigar os segredos na minha nuvem mais escondida – quando penso, enfim, que sob suas ordens vou clicar num link malandro e imediatamente passar tudo para o nome dela, viver para sempre nu de todas as posses e dignidades, eis que fica no fone apenas o bip-bip-bip de uma ligação se interrompendo. Bia fugiu sem propor o que me quereria. Era só grana? Algo a mais? Hoje de tarde a falsa liga de novo.

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