Joaquim Ferreira dos Santos
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Joaquim Ferreira dos Santos

Tudo que for notícia - mas escrita de outro jeito, como se não fosse.

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Joaquim Ferreira dos Santos

Nasceu no Rio e é jornalista há 50 anos, tendo trabalhado nos principais veículos do país. Publicou dez livros, entre eles a biografia de Leila Diniz.

Por Joaquim Ferreira dos Santos


Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas sem as rádios AM, obrigadas por decreto a desligar a partir de zero hora os seus transmissores de amplitude modulada e, assim, apagar da memória de muitas gerações a luz esverdeada das suas válvulas. O mundo era ali.

A luz saía do aparelho de AM e trazia para o centro da sala o cavalgar do herói do sertão, a voz maviosa da favorita da Marinha, o mocotó da Miss Campeonato e tudo mais que a imaginação quisesse formatar quando o locutor, da cabine do Maracanã, gritava a urgência existencial de “o relógio maaaaaaarca....”.

Um país se fazia com homens, livros e uma estação AM perguntando, ali por volta das 19h, com voz sinistra, “Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos?”. Só o Sombra sabia e nos salvava.

Por baixo desta crônica, até o ponto final, estará tocando a balada do grupo inglês Queen, “Radio GaGa”, aquela em que o cantor Freddie Mercury reconhece que o tempo passa, o poder já não é mais o mesmo e agradece ao rádio pelas canções. Solitário na adolescência, olhava a luz, e tudo que precisava saber, diz na letra, vinha dali.

Eu, Freddie Mercury suburbano, giro o dial do programa Cesar de Alencar na Nacional em direção ao hello-crazy-people do Big Boy na Mundial, e sei do que o garoto inglês está falando. Era como se a gente pudesse voar.

O mundo gira, a Lusitana roda, assim como cada minuto que passa é um milagre que não se repete. O governo resolveu dar ao país, e é razoável, uma existência sem ruídos, uma civilização exclusivamente em frequência modulada, mais aplicável à distopia digital. O caboclinho querido, o comentarista da palavra fácil e as macacas de auditório vão entender. Sem mágoas.

Se isto aqui fosse um reclame, eu diria que a FM é como o slogan de um comprimido Melhoral – é melhor e não faz mal. Se fosse um esquete do “Balança, mas não cai”, a AM seria o Primo Pobre. Acabrunhado com a superioridade evidente da concorrência, ele reconheceria a alegria do primo poderoso com o bordão de eterna ironia: “Rico ri à toa”.

O rádio AM inventou o Brasil que se conhecia até ontem. Em ondas hertzianas, ele mandava mamães Dolores, o Trio Maravilhoso Regina e sambas canções pelo espaço azul, tudo reunindo num grande abraço corações de norte ao sul. Eu estava lá, iluminado de verde por essas válvulas que agora se apagam, em mais um sonho que, como na letra do bolero, chega ao fim.

“Foi a última volta do ponteiro”, gritaria na PRE-8 o narrador de jogos de futebol, esse primeiro mestre de filosofia na vida de um garoto brasileiro. “Tá esgotado o tempo regulamentar da contenda.”

O país já quase não se ouvia em AM, mas é simbólico demais que neste momento de tensão, o ódio matando nas novas formas de comunicação, estejam sendo desligados os transmissores de onde vieram as vozes mais delicadas de nossa formação. Foi a primeira aldeia nacional, e o Brasil parecia gostar do Brasil. Tudo passa, tudo em algum momento escurece, mas a mágica do rádio criava outras ideias de esperança e luz. Depois do sol, quem iluminava o seu lar era a Galeria Silvestre.

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