Joaquim Ferreira dos Santos
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Joaquim Ferreira dos Santos

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Informações da coluna

Joaquim Ferreira dos Santos

Nasceu no Rio e é jornalista há 50 anos, tendo trabalhado nos principais veículos do país. Publicou dez livros, entre eles a biografia de Leila Diniz.

Por Joaquim Ferreira dos Santos

RESUMO

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GERADO EM: 09/09/2024 - 00:02

"Patrimônio Cultural Carioca: Resgate e Preservação"

Os biscoitos de polvilho e o patrimônio imaterial carioca são enaltecidos pelo autor que pede urgência em preservar aspectos culturais como a bossa nova e elementos cotidianos da cidade. A cidade se faz dos pequenos detalhes, sendo essencial valorizá-los para manter viva a identidade cultural carioca. A crônica destaca a importância de atos simples e tradicionais que fazem parte do cotidiano e da memória coletiva da cidade, enfatizando a necessidade de preservação e reconhecimento desses elementos imateriais.

É justo, eu diria que é muito justo, é justíssimo, incorporando o Belarmino do José Wilker na “Renascer” de 1993, que a bossa nova seja incluída, como aconteceu semana passada, no rol dos patrimônios imateriais da cultura carioca. Que assim seja, que ela para sempre acaricie a cidade com a brisa leve de seus sambas – mas em 2024, porém, ai meus poréns, é preciso ser mais do que justíssimo. Urge ser urgentíssimo e, antes que tudo acabe, tombar agora mesmo o pau mulato, o papo reto, o pão na chapa, a chapa quente e o chá dançante na gafieira da Tiradentes.

Eu, vereador de pequenas causas, prefeito deste latifúndio retangular de minudências semanais, declaro também eternizados em lei municipal o bolinho de feijoada, o sangue bom, o vento que sopra no pilotis do Capanema, o jogo de porrinha para ver quem paga a cervejada, a arquitetura do travesseirinho de areia e a obra do Paulinho da Viola, aquele que um dia botou um “ai porém” depois de um “porém” e o breque do samba ficou tão divertido, tão graciosamente debochado, que se tornou impossível a qualquer carioca não repetir a brincadeira numa conversa ou numa crônica.

Eu aproveito para consagrar a crônica de jornal como bem imaterial da prosa municipal, um lero-lero impresso no lugar dos velhos boleros, e que ela se junte a outros bens que a prefeitura já houve por bem em decretos anteriores tombar, como os gols do Zico no Maracanã, os vendedores de mate na praia, a bênção dos Barbadinhos, o frescobol, o bate-bola e a fabulosa decoração do Armazém do Senado, na Gomes Freire.

Uma cidade fica bonita com o Cristo Redentor olhando gigantesco lá de cima, mas ela é feita desses detalhes tão pequenos de nós todos, pequeninos grãos de areia como os da marcha rancho da Dalva, como os caquinhos de cerâmica coloridos nas calçadas do subúrbio e o picadinho de mignon com um ovo frito por cima.

Fica aqui, além deste cacófato ordinário e saboroso, tombados também para a perenidade dos tempos o perfume da flor da noite no alto da Maria Angélica, o jacaré de peito, o letreiro do hotel da Marina no Leblon, o cabelo na régua, a salva de fogos abrindo a procissão, o gol gritado do janelão, as batalhas do hip-hop com rimas em “ão”, e mais ainda a praia do Coqueirão, o Lupicínio cantado pelo Jamelão e as bundinhas de fora quando vem chegando o verão.

Semana passada, a Câmara dos Vereadores e o prefeito andaram se engalfinhando, burocráticos, pela primazia de estabelecer quem de direito teria o poder de carimbar o título de Patrimônio Histórico Cultural Imaterial à bossa nova, todos interessados em ficar bem na foto – e, no entanto, foi assim, devagar, bem devagarzinho, que anos atrás, quando eles resolveram tombar o lambe-lambe das praças, a doce figura já era saudosa.

Urge atividade na laje, excelências, sebo nas canelas, porque é desses pequenos biscoitos de polvilho que se alimenta a cidade, a argamassa leve de uma civilização divertida. A bossa nova já se ouve apenas numa boate no Beco das Garrafas, mas ela resistirá com seus sussurros em nossos corações. Não será como o galo, relógio imaterial de nossas manhãs, que já não canta mais nem no Cantagalo.

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