José Eduardo Agualusa
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José Eduardo Agualusa

Jornalista, escritor e editor.

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José Eduardo Agualusa

No extremo sul de Angola existe um lugar chamado Fim do Mundo. Numa incandescente tarde de julho, há alguns anos, fotografei a placa com o nome da localidade, e prossegui viagem. Alguns quilômetros depois do Fim do Mundo, para sudoeste, encontrei uma pequena casa de pau a pique, pintada de verde.

Uma construção humana num lugar tão remoto, entre a savana e o deserto, pareceu-me um acontecimento improvável, quase milagroso. Parei o carro. Uma placa anunciava: “Biblioteca do Fim do Mundo”. A porta estava aberta. Entrei. Não vi ninguém. Numa das paredes, em estantes toscas, contei cerca de 50 livros, uns sem capa, outros com páginas rasgadas e amareladas. Eram, quase todos, de autores angolanos. Reparei numa edição de “Nós, os do Maculusu”, um romance espantoso, que, segundo reza a lenda, Luandino Vieira teria escrito em apenas sete dias, preso numa cela do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, às ordens da polícia política portuguesa.

Guimarães Rosa (“Grande Sertão: Veredas”) repousava ao lado de Luandino, o que me pareceu uma coincidência generosa, sabendo-se o quanto o primeiro determinou o destino literário do segundo. Havia também vários romances de Jorge Amado. Entre os autores, digamos, mais jovens, dei com Mia Couto (“A varanda do Frangipani”), e Marçal Aquino (“Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”).

Puxei uma das cadeiras para a sombra de um mutiati, e li alguns versos de Ruy Duarte de Carvalho, um poeta que passou a vida inteira a escrever sobre aqueles mesmos horizontes, desmedidos, agrestes e despojados, que nos cercavam; um território nas fronteiras da humanidade: “Quando, /ansiosa, /pela primeira vez /pisares /a terra que te ofereço, /estarei presente /para auscultar, /no ar, /a viração suave do encontro /da lua que transportas /com a sólida /e materna nudez do horizonte.”

Instalar uma biblioteca num lugar tão remoto — no fim do mundo! — me parece mais do que um radical gesto poético; me parece uma extraordinária afirmação de esperança na humanidade. Afinal, livros servem para ligar pessoas. São um instrumento de aproximação. Ali estava eu, depois de ter viajado tanto, depois de me ter afastado dos meus semelhantes, longe do ruído incansável das cidades. Ali estava, numa pequena casa vazia, e, no entanto, cheia de vozes. Numa casa que me convidava a escutar essas outras vozes.

É Natal. Pessoas trocam presentes. Eu ofereço livros, quase sempre, porque me parecem o presente mais ajustado a um tempo que se pretende de paz e de reconciliação.

Neste Natal, lembrando-me da Biblioteca do Fim do Mundo, decidi apostar em livros sobre livros, sobre a leitura, sobre bibliotecas. Sugiro, desde logo, dois ensaios clássicos: “Uma História da leitura” e “Encaixotando minha biblioteca”, do escritor argentino-canadense, radicado em Lisboa, Alberto Menguel. Outro ensaio que, embora recente, já conquistou muitos milhares de leitores no mundo todo é “O infinito em um junco”, da espanhola Irene Valejo. Para quem prefere ficção sugiro “O guardião de livros”, da romancista luso-argentina Cristina Norton, que conta a história de um bibliotecário que, em 1811, recebe a missão de levar até o Rio de Janeiro, em 76 caixotes, a preciosa Real Biblioteca do Palácio de Ajuda.

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