José Eduardo Agualusa
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José Eduardo Agualusa

Jornalista, escritor e editor.

Informações da coluna

José Eduardo Agualusa


CRiança brincando — Foto: Pixabay
CRiança brincando — Foto: Pixabay

Segundo Kianda, a minha filha de 5 anos, “os adultos são crianças escondidas”. Revelou-me isto, certa manhã, a caminho da escolinha. Normalmente, levamos 20 minutos a fazer o percurso a pé. Por vezes distraímo-nos, assistindo ao poderoso espetáculo da vida, e atrasamo-nos alguns minutos. Por espetáculo da vida quero dizer, por exemplo:

1. O velho corvo que nos interpela, em árabe arcaico, em amárico, ou aramaico, ou numa dessas outras línguas remotas e sagradas, pendurado na cabeça do poeta Luís de Camões (estátua horrorosa). Na ilha, só Kianda compreende a língua secreta dos corvos. Ela é a minha intérprete.

2. O mar que galga o paredão, nas marés vivas, e que ameaça devorar a ilha inteira. Kianda tem opiniões muito fortes sobre o aquecimento global, a subida do nível dos mares, e o papel da Humanidade nesse processo.

3. O vendedor de pipocas, que canta canções do Roberto Carlos, enquanto coloca o milho na máquina. Esta é um objeto ao estilo steampunk, que sopra e resfolega, até produzir uma chuva de pipocas.

4. A portinha verde, misteriosa, na parede de uma casa baixa, meio encoberta por uma belíssima buganvília. Muitas vezes nos escondemos, eu e Kianda, atrás de uma árvore, na calçada em frente, tentando surpreender o minúsculo habitante, não sei se uma fada, se um elfo ou um anão, saindo da casa. Até agora isso ainda não aconteceu.

Kianda devolve-me à infância. Quando regresso ao meu escritório, para escrever, tenho outra vez 12 anos. Nos dias bons, aqueles em que nos atrasamos, consigo recuar até aos 7. Lembro-me sempre de Pablo Picasso: “Levei quatro anos para pintar como Rafael; levei a vida toda para aprender a desenhar como um menino.”

Acontece o mesmo comigo: ao ameninar-me recupero a capacidade de ver o explícito, ou seja, tudo aquilo que temos mesmo diante dos olhos, e, com a idade, o hábito e o tédio, deixamos de enxergar.

O exercício de subversão da realidade, que qualquer criança pratica de olhos fechados (literalmente), também me ajuda como escritor. Juntemos a isto a empatia, a compaixão pelos seres mais desprotegidos ou a particular percepção do tempo, comum entre as crianças.

Lembro-me muito bem da manhã em que deixamos uma cadeirinha de cartão, que Kianda pacientemente desenhara e recortara, junto à porta verde. “É para o elfo se sentar”, explicou-me ela.

— Você acredita realmente que os elfos existem?

— A porta existe realmente — retorquiu, usando da lógica implacável das crianças. — As portas se abrem, não abrem? Aquela se abre para onde a gente quiser.

O velho corvo, que Kianda me disse chamar-se Malik, Senhor Malik, gosta de se pendurar na cabeça de Luís de Camões, porque dali ele vê a poesia.

— E o que é poesia? — atrevi-me a perguntar.

Kianda não hesitou na resposta:

— É como torcer as palavras, mas para o lado certo. Você torce as palavras até que elas cantem.

— O Camões fazia isso?

— O Senhor Malik diz que sim, e ele é velho e sabe tudo.

Depois de deixar Kianda na escolinha, volto a passar pela estátua de Luís de Camões. Pode acontecer reencontrar o Senhor Malik. Umas vezes, o velho corvo ignora-me; outras ralha comigo. Não compreendo o que diz, mas cumprimento-o sempre.

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