José Eduardo Agualusa
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José Eduardo Agualusa

Jornalista, escritor e editor.

Informações da coluna

José Eduardo Agualusa

Passei uma semana em Marrakech, num festival literário, juntamente com cinco dezenas de escritores africanos, na sua maioria francófonos. O Festival do Livro Africano de Marrakech (Flam) tem por principal objetivo reunificar literariamente a África árabe e a África ao sul do Saara que, na prática, sempre foram dois continentes separados por um imenso deserto. Eu e Mia Couto éramos os únicos escritores de língua portuguesa. Não havia escritores de língua inglesa.

Certa tarde, caminhando absorto pelas ruas agitadas da medina, escutei um fragmento de uma conversa entre dois turistas americanos.

— Afinal, o que realmente importa? — Perguntava um deles.

Não ouvi a resposta. Não sei o que, na opinião deles, é verdadeiramente importante. A pergunta, contudo, ficou a ressoar em mim o resto da tarde. À noite, no quarto do hotel, recebi uma videochamada da minha filha mais nova, Kianda, de 5 anos. Disse-me que tinha feito um poema para mim.

— Um poema, filha?! E como é?

A menina perfilou-se, muito direita, muito séria, diante da câmera do celular:

— O corvo recolhe silêncios./ As lágrimas do treinador de basquete depois do jogo.

Não lhe pedi que me explicasse o poema. Não se pede uma coisa dessas a uma poeta. Minutos depois, Mia Couto enviou-me uma fotografia. No chão do banheiro do quarto dele, no mesmo hotel, a sombra do cabo do secador de cabelo desenhava nitidamente uma palavra: água. Parecia algo impossível. Se ele tivesse passado a semana inteira a torcer e a retorcer o cabo do secador de cabelo não teria conseguido um efeito semelhante. Liguei para ele:

— O que significa isso?

— Não faço ideia. Talvez alguém, ou alguma coisa, esteja tentando se comunicar comigo. Ou contigo. A palavra é água, ou seja, o início do teu nome…

— O Universo, achas?!…

— Pode ser…

Não me custa aceitar a ideia de que tudo ao nosso redor está se esforçando por se comunicar conosco, desde o vento soprando entre o canavial, à impassível orquídea que, num vaso diante de mim, ilumina o quarto com o seu grande silêncio. Consigo até aceitar que o Universo tente se comunicar conosco através de uma frase ouvida por acaso numa esquina, ou por intermédio de uma criança em estado de poesia. Agora, que o Universo se dê ao trabalho de utilizar não só o nosso alfabeto, mas também o nosso idioma, escrevendo com sombra no piso de um banheiro, isso já me parece um pouco excessivo — só se o Universo estivesse mesmo muito desesperado para falar comigo.

Deitei-me a pensar na pergunta do turista americano. Para mim o que realmente importa é a poesia — porque nos permite intuir a voz do Universo; e, claro, as pessoas que amamos, porque sem elas o Universo não teria importância nenhuma.

Rir. Nadar. Flutuar de costas, como quem levita. Ler um bom romance. Dançar. Ver as estrelas, de noite, e as baleias, de manhã muito cedo. Cozinhar para os amigos. Sentir-me pertença da própria vida (esta foi-me dada pelo próprio Mia Couto).

Além de todos os pequenos milagres do cotidiano, como os que se encontram passeando pela medina de Marrakech, numa qualquer tarde de inverno.

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