Não estou muito interessado em discutir quem ganhou o debate do último dia 10 entre Donald Trump e Kamala Harris. Sei quem perdeu — a democracia americana. Ou, antes, a democracia.
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Aquele foi um espetáculo dirigido aos eleitores norte-americanos. Porém, era aberto. Vi-o em minha casa, na Ilha de Moçambique. Muitos milhões de africanos, de latino-americanos, de asiáticos e de europeus também o viram.
E o que viram? Viram um antigo presidente dos Estados Unidos da América insultando o sistema democrático. Troçando dele. Degradando-o. Esse antigo presidente, Donald Trump, insistiu ali mesmo, diante do mundo inteiro, na tese segundo a qual terá vencido o anterior pleito eleitoral. Kamala desmentiu-o, mas sem a formidável indignação que uma afirmação tão grave quanto aquela deveria suscitar.
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Kamala também disse que muitos dirigentes mundiais riem de Trump. Infelizmente, toda essa gente que se ri de Trump (dirigentes e dirigidos) não está rindo apenas do disparatado cidadão Donald John Trump. Riem daquilo que Trump representou e ainda representa. Riem do fato de alguém como Trump estar concorrendo para a presidência dos EUA, com o apoio do Partido Republicano e de quase metade da população do país.
Aqui, neste remoto recanto de África, escuto nas ruas os comentários de pessoas comuns, espantadas com o fato de uma democracia poderosa ter como líderes figuras da baixeza moral, cívica e intelectual de um Donald Trump. Muitas outras pessoas, em países sujeitos a regimes totalitários, ou em democracias frágeis e emergentes, estarão fazendo comentários semelhantes.
Não foi Vladimir Putin quem inventou Donald Trump. Para o ditador russo, contudo, Trump é a arma mais poderosa de que dispõe no combate contra os Estados Unidos. Corrijo: no combate contra a própria ideia de democracia, que é, no fundo, aquilo que ele realmente receia.
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Kamala vencerá as próximas eleições. Donald Trump perderá tudo. Logo será abandonado pelos seus seguidores, pela atual esposa, pelos filhos, e passará o resto da vida respondendo a processos criminais, de tribunal em tribunal. Nessa altura talvez se arrependa de não ter desistido em favor, por exemplo, de Nikky Haley, que, uma vez eleita, certamente o anistiaria.
Porém, o veneno populista não desaparecerá com Trump. Está instalado no sistema, e continuará corroendo-o e aviltando-o.
Os americanos precisam pensar em como regenerar e modernizar a sua democracia. Isto vale também para os europeus. Vale também para o Brasil. O Ocidente enfrenta uma grave crise de identidade e de valores. A sua influência global vem declinando, na mesma medida em que, por exemplo, a China se fortalece e se afirma.
As novas tecnologias trouxeram desafios inéditos para as democracias. A democratização do conhecimento veio de mãos dadas com a democratização da ignorância, do erro, do puro disparate, abrindo espaço para os príncipes da mentira.
É possível salvar as democracias? Acredito que sim, mas não será tarefa fácil.