José Eduardo Agualusa
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Na manhã da passada segunda-feira, recebi uma chamada de Luanda com uma notícia terrível: o escritor Miguel Gullander fora encontrado morto em seu apartamento, na capital angolana, poucas horas antes.

Atravessei os últimos dias entre o horror e a incredulidade. Miguel tinha 48 anos e vivia em estado de fúria e de paixão. Quando o conheci, em 2006, o que primeiro me espantou e seduziu foi a tremenda energia que colocava em cada palavra e em cada gesto. Na época, ainda só publicara um romance, “A balada do marinheiro de estrada”, e estava a trabalhar num segundo, “Perdido de volta”, cuja ação se situa em Cabo Verde, país onde então residia e trabalhava como professor de língua portuguesa.

Miguel Gullander era filho de um português e de uma sueca, e brincava com isso, afirmando ser um escandaluso. Contudo, viveu mais tempo no continente africano do que em Portugal ou na Escandinávia. Além de formar professores de língua portuguesa, dedicava-se também a dar aulas de escrita criativa, sempre com enorme sucesso. Nas redes sociais, amigos e alunos reagiram à notícia da sua morte com perplexidade, dor e revolta.

“Num desesperado grito silencioso, Miguel Gullander deixou-nos abandonados neste mundo, que flutua como um grão de poeira no vazio da noite, confirmando que os homens crescem inconcebivelmente sós. Quando alguém morria, os gregos faziam a pergunta: viveu com paixão? O Miguel era paixão e dentro dela vivia”, escreveu a arquiteta angolana Maria João Teles Grilo.

Numa entrevista ao jornal português Público, na altura em que lançou “Através da chuva”, Gullander referiu-se à vida como uma experiência partilhada, num mundo estranhíssimo — “Temos a cabeça como uma tocha em chamas. O que fazer perante isso?”

Os seus romances são um olhar sem complacência sobre esse “mundo estranhíssimo”. Neles, denuncia a hipocrisia dos países do Norte, que, nos discursos oficiais, defendem o desenvolvimento sustentado do continente africano, ao mesmo tempo que, na prática, corrompem, saqueiam, promovem guerras e intrigas.

A obra de Miguel, densa e sombria, não é fácil de se ler — mas deve ser lida. A dor que se desprende dela transportava-a Miguel todos os dias, na carne e no espírito. Muito jovem, antes de partir para a África, sofreu um acidente de carro. Semanas mais tarde, ainda recuperando-se do acidente, passeava pelo Bairro Alto, em Lisboa, com amigos africanos, quando surgiu um grupo de neonazis. Os amigos conseguiram escapar. Miguel, de muletas, teve menos sorte. Os criminosos espancaram-no brutalmente. Sobreviveu, mas com graves sequelas. Ao longo dos anos foi escondendo as cicatrizes com tatuagens. O sofrimento, esse, era mais difícil de ocultar.

Miguel Gullander publicou dois romances no Brasil — “Perdido de volta” e “Através da chuva” —, ambos com a Língua Geral, que, entretanto, desapareceu. Espero que alguma outra editora se interesse por eles. Escritores como Miguel, que escrevem olhando o abismo, com a “cabeça como uma tocha em chamas”, são raros e preciosos — convém escutá-los.

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