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Cultura

Julia Rezende discute o desejo sob a ótica feminina em filme cheio de cenas quentes com Leticia Colin

Diretora, que já levou mais de oito milhões de pessoas aos cinemas, aborda questões como traição, fidelidade e casamento aberto em novo longa: 'A monogamia é uma hipocrisia'
Julia Rezende leva para os longas que dirige questões de sua geração Foto: Ana Alexandrino
Julia Rezende leva para os longas que dirige questões de sua geração Foto: Ana Alexandrino

O quanto reprimimos nosso desejo para caber em uma relação monogâmica? O que configura uma traição? Flerte virtual pode? Fidelidade tem a ver com não ter outros parceiros sexuais? Essas são algumas questões discutidas em "A porta ao lado", novo filme que a diretora carioca Julia Rezende, de 35 anos, roda no Rio cercada por equipamentos de segurança, fiscais de protocolo, testes diários de Covid-19 e refeições à distância, com um de costas para o outro a fim de evitar que se puxe conversa.

O contexto pode ser completamente novo, mas a intimidade com o set é antiga. Esse é o oitavo filme da cineasta, conhecida por investigar a fragilidade dos relacionamentos amorosos seja em longas autorais (como "Ponte aérea") ou em comédias de sucesso ("Meu passado me condena"). E também por retratar a própria geração com franqueza e sensibilidade, como em "Depois a louca sou eu", protagonizado por Débora Falabella. Agora, a jovem diretora quer falar de desejo. E, Julia, na maioria das vezes, fala para muita gente.

Ela é a mulher que mais dirige filmes no Brasil. Em público, acumula mais de 8 milhões de espectadores com seus longas (outros são o primeiro "Meu passado me condena", "De pernas pro ar 3", "Como é cruel viver assim" e "Um namorado para minha mulher"). Está atrás apenas de Susana Garcia, responsável pelos dois últimos filmes de Paulo Gustavo. O sucesso, Julia sabe, não está só ligado ao seu talento e dedicação. Mas ao fato de ter decidido muito cedo, aos 15 anos, a profissão que desejava seguir e também do lugar de privilégio de onde partiu.

Ela é filha do cineasta Sérgio Rezende e da produtora Mariza Leão, que lhe abriram muitas portas. Passava as férias escolares em sets e guarda na memória como marcos de  idade não as suas festas de aniversário, mas os filmes rodados pelo pai ("quanto eu tinha 7 anos, foi 'Lamarca', 10, 'Canudos', 12, Mauá'...", lembra). Com a família, aprendeu a importância de tornar o ambiente de trabalho leve e agradável, blindar a concentração dos atores das tensões geradas por imprevistos e jamais subir o tom. Mal se ouve a voz de Julia no set. Se precisar, levanta 50 vezes da cadeira para passar instruções aos atores bem pertinho deles ("Julia gosta de ator, o que pode parecer simples e comum nos diretores, mas não é", garante a atriz Leticia Colin).

Casamento aberto

Junto com a Escola de Cinema Darcy Ribeiro, Julia cursou História. Em seu TCC, discutiu o quanto Simone de Beauvoir e Sartre aplicavam, na prática, a liberdade sexual que pregavam na teoria. Anos depois daquela monografia, separada e com um filho de três anos, ela revisita o assunto em “A porta ao lado”.

No longa, produzido pela Morena Filmes, Leticia Colin e Dan Ferreira vivem um casamento estável e monogâmico que é impactado pela chegada de novos vizinhos. O casal Bárbara Paz e Tulio Starling exalam liberdade e tensão sexual em uma relação aberta. O encontro provoca desejos, dúvidas, traições e transformações, fazendo com que cada um reavalie suas escolhas.

— Acho que vivemos um dilema cultural, o de que a monogamia é uma hipocrisia. As pessoas traem, só não contam. Queremos anular o desejo do outro quando a maioria das pessoas não anula o próprio. E o que acontece é um pacto silencioso. As pessoas fazem e mentem. E o quanto essa mentira é tóxica? Está ali numa relação fechada, mas fica ali só no DM do Instagram. Criar cumplicidade com outra pessoa é trair? — reflete a diretora, que costuma levar para o cinema as questões que a mobilizam na vida.

O filme, aliás, surgiu de conversas pessoais entre Julia e Leticia, diretora e atriz de "Ponte aérea", longa inspirado no conceito de amor líquido. Enquanto a cineasta — definida pela atriz Débora Falabella como "uma antena, um farol da sua geração" — e Leticia debatiam sobre as próprias escolhas, observavam as vivências dos amigos e questões geracionais de relacionamento, passaram a questionar a "monogamia compulsória".

— A gente fica que nem cavalo sem olhar a para o lado para não despertar o desejo. Mas o que faz quando é despertado? Se permitir ou anular o seu desejo? O que desconserta as pessoas ao pensar numa relação aberta é pensar que o desejo do outro está livre, né? A gente fica querendo canalizá-lo todo para si mesmo e isso não vai acontecer. Qual é o acordo possível para cada um? Nunca se falou tanto em casamento aberto — acredita a diretora.

Com 46 anos de consultório, a psicanalista e autora do livro “Novas formas de amar”, Regina Navarro Lins, concorda. Ela já afirmou que "a monogamia está com os dias contados" e conta que essa é uma das principais questões discutidas em seu divã hoje.

—  Na revolução sexual dos anos 1960 e 1970 o assunto era debatido, mas por grupos restritos. O que a gente vê hoje é uma tendência, cada vez mais pessoas desejando abrir a relação, e um número cada vez maior de mulheres. A principal pergunta que elas fazem nas minhas lives é: "Como falo para o meu marido que quero abrir a relação?" - conta Regina. —  O amor romântico está saindo de cena e leva com ele sua característica básica: a exigência da exclusividade. Os modelos tradicionais não dão mais conta da diversidade das relações. Por isso, vemos novos acordos surgirem, como o amor livre, o amor a três, o poliamor. Estamos no meio de um processo de profundas mudanças das mentalidades.

"A porta ao lado" coloca todas essas questões na mesa, mas não traz respostas. Mostra que, na prática, não é fácil bancar nenhuma escolha. Vide o climão da cena em que Leticia (Mari) e Bárbara (a bissexual Ísis) se encontram após a primeira transar com o marido da outra.

— A gente lida muito mal com nossos desejos, somos muito reprimidos. Mas a forma de a gente se relacionar está mudando. Vejo meus amigos dessa geração que está vindo, cada vez mais solta, livre, fluida, onde essa o conceito de propriedade está caindo — observa Leticia. — O que é interessante porque a gente vive num mundo muito individualista. Mexer na chavinha dessas instituição social casamento é um lugar muito do arcabouço da sociedade. O mundo está passando por essa revolução e isso vai ter que ser falado, revisto.

Segundo Regina, tudo que a gente tem feito há dois mil anos é reprimir nosso desejo. Para ela, a maior parte das pessoas perde um tempo enorme com fantasias, desejos, medos e frustrações.

—  As pessoas vivem muito mal nessa área amorosa e sexual, e o problema é esse modelo de casamento tradicional que aceita com naturalidade o controle, a possessividade, o ciúme e o desrespeito à individualidade do outro. Mas tudo indica que, hoje, cada vez menos pessoas querem se fechar numa relação a dois.

Libido, sexo e masturbação feminina

Letícia Colin e Bárbara Paz: climão no longa 'A porta ao lado' Foto: Desiree do Valle
Letícia Colin e Bárbara Paz: climão no longa 'A porta ao lado' Foto: Desiree do Valle

“A porta ao lado” chega num momento em que o cinema brasileiro tem explorado pouco o tema “desejo”, afirma a produtora Mariza Leão, com mais de 40 anos de carreira, responsável pelo filme de Julia Rezende. Mariza cita longas nacionais, como "A dama do lotação", e estrangeiros, como "Morte em Veneza", "Belle de jour", "Me chame pelo seu nome" como exemplos de longas que trataram do tema. E contar a história de uma mulher (Mari, personagem de Leticia Colin) que se lança em direção às próprias vontades dialoga com os tempos atuais em que as mulheres estão tomando as rédeas de sua sexualidade.

O ponto de vista feminino rega de sensibilidade a abordagem dos assuntos e também contribui para que mulheres se sintam representadas nas (várias) cenas de sexo contidas no filme.

— Muito do que vimos no cinema sobre sexo foi contado pelo pornô supermachista, que não está ligado à erotização nem à sensualidade. Não me reconheço nem me conecto ali, não mexe com a minha libido — diz Leticia. — Precisamos criar uma videoteca com imagens mais humanizadas, amorosas e femininas no sentido da potência que é o sexo. E isso não tem nada a ver com sentimentalismo.

Ter uma mulher à frente da direção, além de uma roteirista escrevendo (Patricia Corso, que assina o texto junto com L.G. Bayão), também foi fundamental para deixar as atrizes seguras. Só para ilustrar a importância disso, basta lembrar que a britânica Michaela Coel, criadora e protagonista da série “I may destroy you”, dedicou seu prêmio Bafta à coordenadora de intimidade que trabalhou a seu lado.

— Já vimos muito o corpo da mulher ser explorado gratuitamente. Espero que a coisa do coaching especializado em cenas de sexo pegue no Brasil, eu vou lutar por isso. A gente precisa de mais ferramentas profissionais que nem temos a Técnica Meisner e Stela Adler, sabe? — defende Leticia, que protagoniza uma cena de masturbação feminina, poucas vezes vista no cinema brasileiro, bem distante daquelas com vibrador e fetichizadas.

Em busca desse imaginário sexual mais humano e gentil, que não pretende, necessariamente, gerar tesão em quem está assistindo, a diretora Julia Rezende colocou a personagem sozinha em sua intimidade, acompanhada apenas de seu desejo.

— Me sinto à vontade para trazer coisas pessoais minhas e bem segura ao ser guiada pela Julia, que é calma, sutil e delicada — define Leticia. — Acho que o filme é um megaestandarte que estamos fincando no imaginário das pessoas. Ajuda a criar um diálogo e faz com que nós, mulheres, façamos as pazes com a nossa sexualidade, com a dos nossos casamentos, relacionamentos abertos ou fechados, com o que nos dá prazer de verdade. Isso para além das performances que criamos na cabeça porque disseram que tinha que ser assim ou assado.

Bárbara Paz assina embaixo:

— São tantas mulheres diferentes e interessantes abordadas nos filmes da Julia... Ela sabe do que está falando e tem a missão de desvendar todas nossas complexidades.