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Cultura

Ken Follett: 'Estou do lado dos que querem derrubar estátuas de escravocratas'

Famoso por best-sellers de espionagem e romances históricos, autor britânico lança 'O crepúsculo e a aurora', livro que antecede a trilogia medieval 'Kingsbridge'
O escritor britânico Ken Follett: "Hoje muita gente está votando contra sua própria liberdade" Foto: Olivier Favre / Divulgação
O escritor britânico Ken Follett: "Hoje muita gente está votando contra sua própria liberdade" Foto: Olivier Favre / Divulgação

SÃO PAULO — Pesquisando para escrever “O crepúsculo e a aurora”, cujo lançamento mundial ocorreu nesta terça-feira (15), o britânico Ken Follet descobriu que os vikings, além de guerreiros e desbravadores dos mares do norte da Europa, também eram traficantes de escravos. Os escandinavos vendiam seus prisioneiros de guerra em mercados na França e nas Ilhas Britânicas, onde 10% da população eram de escravizados.

No novo romance, Follett volta a Kingsbrigde, a cidade que serviu de cenário para a trilogia histórica composta por “Os pilares da Terra”, “Mundo sem fim” e “Coluna de fogo”, no tempo em que ela ainda se chamava Travessia de Dreng, vivia ameaçada por invasões vikings e escravos custavam uma libra. Lá, um fabricante de navios, uma nobre da Normandia e um frei desafiam chefes políticos e religiosos e exigem justiça.

Follett gosta que seus romances históricos sejam povoados por personagens que lutam pela liberdade. Ao GLOBO, ele defendeu a derrubada de estátuas de escravocratas.

Durante as pesquisas para “O crepúsculo e a aurora”, o que mais o impressionou?

Não sabia que os vikings eram traficantes de escravos e que havia grandes mercados de escravos em Dublin (Irlanda) , em Bristol (Inglaterra) e em Rouen (França) . Fui confrontado com o fato de que estava escrevendo sobre uma sociedade na qual 10% das pessoas eram escravizadas. Esse não é o retrato que os historiadores nos dão dos anglo-saxões. Uma sociedade onde há escravidão é sempre violenta.

Ativistas exigem a derrubada de estátuas de escravocratas. Você concorda?

Estou do lado dos que querem derrubar estátuas de escravocratas . É um insulto que meus vizinhos negros sejam obrigados a passar ao lado de estátuas de homens que escravizaram seus ancestrais. Se essas estátuas estivessem em museus, haveria placas explicando o que esses homens fizeram de bom e de ruim, mas eles estão sendo honrados em praças públicas. Em Bristol, jogaram a estátua de Edward Colston, um traficantes de escravos, no rio . Em 1972, eu entrevistei Stevie Wonder numa casa de shows chamada Colston Hall, em Bristol. Ninguém sabia que estávamos em um lugar batizado em homenagem a um traficante de escravos. Agora sabemos e não podemos tolerar mais isso.

Pesquisar o passado para escrever seus livros te ajuda a melhor entender e enfrentar o presente?

Ajuda, sim. Eu começo a ver paralelos. Hoje muita gente está votando contra sua própria liberdade . Os turcos votam em ( Recep Tayyip) Erdoğan sabendo que ele não quer uma sociedade democrática e secularizada. Nos anos 1920 e 1930, nações europeias também votaram contra a liberdade e veja o que aconteceu. Líderes como Erdoğan, como Donald Trump, vão e vem. Cedo ou tarde, os americanos vão perceber que estão perdendo dinheiro, liberdade e até saúde por causa desse presidente de merda. Apesar dos populistas, do racismo e dos ataques à liberdade, creio que meus netos vão enxergar a segunda metade do século XX e o para o começo do século XXI como um período de progresso com alguns reveses.

Capa de "O crepúsculo e a aurora", novo romance histórico do escritor britânico Ken Follett Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "O crepúsculo e a aurora", novo romance histórico do escritor britânico Ken Follett Foto: Reprodução / Divulgação

Você escreve romances históricos nos quais os personagens lutam por liberdade. Qual a principal luta libertária do nosso tempo?

A luta antirracista. Para escravizar uma pessoa e tratá-la como o gado, é preciso contar a si mesmo a mentira de que o outro é inferior, não é tão humano quanto nós. Essa mentira contada por nossos ancestrais foi passando de geração em geração. É por isso que o racismo é tão difícil de ser erradicado e que lutar contra ele é a missão mais importante que temos hoje.

O governo brasileiro ameaça tributar os livros, o que não ocorre no Reino Unido. Qual o papel dos governos na promoção da leitura?

Ler nos permite entrar na cabeça de pessoas que não são como nós, que vivem em outros lugares ou períodos históricos, que têm outro gênero ou cor de pele. Isso nos torna empáticos. É difícil odiar uma pessoa quando entendemos como ela se sente. É por isso que a leitura é importante. É complicado eu dizer “não à tributação dos livros” porque vão falar que isso me beneficiaria financeiramente. Mas posso sugerir ao governo brasileiro que pense bem se o pouco que ele vai ganhar em arrecadação compensa a perda de leitores e do incentivo à empatia.

Como você tem passado a quarentena?

Meus dias têm sido iguais nos últimos 45 anos. Eu escrevo o dia todo. Minhas noites andam menos divertidas (risos) . Há seis meses não vou a um restaurante, que é o que eu mais gosto de fazer. Os restaurantes são a maior invenção da humanidade: você se senta à mesa com amigos e te trazem comida e vinho! Também sinto falta de ir ao teatro. No sábado, fui a um show drive-in dos Kaiser Chiefs ao ar livre, num parque.

Entre história e espionagem

Nascido no País de Gales em 1949, Ken Follett é autor de mais de 30 livros que, juntos, ultrapassaram a marca de 170 milhões de cópias vendidas em mais de 80 países e 33 idiomas. Depois de alguns fracassos editoriais, Follett publicou, em 1974, “O buraco da agulha”, um romance de espionagem cheio de tramas mirabolantes e intrigas internacionais, ambientado durante a Segunda Guerra Mundial, que foi seu primeiro best-seller.

Follett costuma alternar entre thrillers e romances históricos que às vezes ultrapassam mil páginas. Em 1989, ele lançou “Os pilares da Terra”, o primeiro volume da trilogia “Kingsbridge”, que acompanha uma cidadezinha inglesa desde meados da Idade Média, quando começa a construção de uma catedral, até a mortandade provocada pela peste negra (“Mundo sem fim”) e as guerras religiosas do século XVI (“Coluna de fogo”). Até hoje, “Os pilares da Terra” vendeu mais de 27 milhões de exemplares em todo o mundo. Também é autor de outra trilogia histórica, “O século”, que começa em 1911 e termina com a eleição de Barack Obama, em 2008.

No Brasil, “Os pilares da Terra” é publicado pela editora Rocco. A partir de 2010, a obra de Follett passou a ser lançada pelo selo Arqueiro, da Sextante, e, desde então, já vendeu mais de 840 mil livros.

Serviço:

'O crepúsculo e a aurora'

Autor: Ken Follett.

Tradução: Fernanda Abreu

Editora: Arqueiro.

Páginas: 794.

Preço: R$ 69.90.